Ano
da Era do Senhor de 824. A origem de tudo
«(…) É como se centenas de velas
iluminassem aquele lugar específico. É um facto milagroso, senhor, não pode ser
coisa natural! Além disso, há também o meu sonho sobre o túmulo de S. Tiago
Maior... Bem, bem, interpôs Teodomiro, com um gesto enérgico da mão, não
ponhamos o carro à frente dos bois, Paio. Os sonhos são apenas isso..., sonhos,
e não têm necessariamente significados racionais. Paio aprestava-se a responder,
mas o escrivão fez-lhe sinal para que se mantivesse em silêncio. O eremita respeitou-o
recuou prudentemente alguns passos e, adoptando uma atitude submissa, aguardou
pacientemente a decisão do bispo. Observou atentamente a cabeça do ministro da
Igreja, coberta por um barrete algo deteriorado pelo uso. Tinha as orelhas
grandes e brancas como o resto da pele e os olhos pequenos e brilhantes, de uma
cor obscura, quase negra, o que lhe proporcionava um olhar intenso e difícil de
sustentar. O bispo permaneceu pensativo, com a expressão perdida nas suas
reflexões, e Paio pensou que o clérigo voltaria a despachá-lo com palavras simpáticas,
no sem antes lhe dar algo para meter no estômago. O eremita cruzou então as
mãos sobre o peito e sussurrou uma oração. Está bem, disse a voz ténue do bispo
arrancando-o à sua reza. Iremos ao bosque de Libredón para comprovar o que
dizes, Paio. Martín, chamou, levantando-se decidido e voltando-se para o escrivão,
prepara tudo para a partida. Vamos verificar o que vêem os olhos deste bom homem.
Já anoitecia quando o cortejo
chegou à clareira do bosque onde se erguia a cela do eremita. O céu
encontrava-se quase limpo e um manto de estrelas começava a engalanar a
escuridão do firmamento com pequenos pontos de luz. É ali, senhor. Segui-me,
rogo-vos. Paio indicou o lugar ao bispo, que o seguia no seu cavalo negro como
azeviche, cuja pele brilhava à luz do crepúsculo. A comitiva tinha-se detido à porta
da choupana que servia de morada a Paio. Os outros desmontaram cansados e conscientes
de que lhes tocaria dormir no chão. Teodomiro não desmontou e moveu as rédeas
para que o animal seguisse os passos de Paio que se afastava com o braço
estendido para diante, apontando o local exacto aonde queria chegar. É aqui. Paio voltou-se e esperou
pelo bispo. O cavalo avançava devagar, manifestando a mesma insegurança que o
seu dono. Quando chegou ao pé do eremita, o bispo olhou em redor sem dizer nada.
Comprovai vós mesmo que o que eu
vos dizia era verdade, Eminência. Atento à reacção do bispo, as palavras
saíram-lhe balbuciantes. Paio, é certo que, neste lugar as estrelas se vêem
mais claramente... Porém, não vejo nisto nenhum milagre. Há que observar com os
olhos da fé... Estás a dizer-me que não tenho fé suficiente para distinguir as obras
de Deus dos embustes dos farsantes?! Não é minha intenção ofendê-lo, senhor, murmurou
o eremita, curvando-se cabisbaixo, em sinal de respeito, apenas lhe rogo que
prepare o espírito para receber a mensagem de Deus. O bispo Teodomiro suspirou,
cansado. Tinha cavalgado durante toda a tarde, as suas costas ressentiam-se do
esforço e encontrava-se algo enjoado.
Talvez tenhas razão, retorquiu, sussurrando
pensativo. É melhor preparar o meu espírito. Farei três dias e três noites de jejum
para saber se Deus Nosso Senhor pretende manifestar-nos algo relacionado com este
lugar. Preciso desse jejum para limpar o corpo e a alma. Havia já alguns dias
que pensava recolher-se a um lugar tranquilo para meditar sobre o caos em que se
encontravam os territórios da diocese, sujeitos à ameaça constante dos normandos,
por mar, e dos sarracenos, que nada respeitavam. Os fiéis reclamavam-lhe uma solução
para devolver a tranquilidade às famílias que, com grandes dificuldades, mantinham
uma fé frágil. Tinha de encontrar alguma forma de lhes transmitir a certeza de que
não tinham sido abandonados por Deus nem pela própria Iqreja, que parecia
alheia a todo o seu sofrimento, às mortes e às suas perdas de possessões. Mas o
que poderia ele fazer, o pobre bispo de Iria Flavia, naquela terra considerada
o fim do mundo, uma terra com a qual se havia desentendido o resto da cristandade?
Tinham-lhe chegado notícias de que o rei Afonso havia pedido ajuda ao imperador
franco para deter o avanço imparável dos infiéis e rechaçar os seus ataques, mas
esses eram assuntos de carácter político, questões de guerra e de defesa do território
que tinham a ver com a garantia da segurança dos habitantes do reino.
Teodomiro sabia que sob o seu amparo
estavam os fiéis da sua diocese, por cujos espíritos tinha de velar, mantendo viva
a chama da fé e da esperança. Por esse motivo, decidiu orar enquanto se submetia a um jejum
voluntário de três dias naquele lugar tranquilo, afastado de todos os problemas
quotidianos e terrenos da diocese, com o objectivo de, assim, preparar a mente e
o espírito para ouvir a Deus, caso este se apiedasse dele e fizesse por bem aclarar
os seus pensamentos confusos. Depois de despachar a maior parte dos homens que o
tinham acompanhado na comitiva, ordenando-lhes que voltassem à sede episcopal de
Iria, ficou apenas com a companhia de Martín e de uma guarnição composta por três
soldados, suficiente para a sua protecção. Iniciou o jejum naquela mesma noite».
In
Paloma Sanchez-Garnica, A Alma das Pedras, tradução de Miguel Coutinho, Saída
de Emergência, 2010, ISBN 978-989-637-288-0.
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