«(…)
Falámos muito da sua vida, dos amigos comuns, e também da sua morte, que ele
aguardava agora com um misto de curiosidade e alívio. Ofereceu-me uma pulseira
de prata velha, encontrada numa rua no Sul do Egipto, e que ele estimava
infinitamente, dizendo-me: é altura de
dar os meus objectos preferidos a todos aqueles que amo. Sem dúvida que é
graças a esse dia, que no fundo nos permitiu dizermos adeus um ao outro, que eu
posso agora estar a seu lado, sem esperar nada de especial, com o coração em paz,
saboreando no segredo da minha alma o incrível presente dos seus últimos
momentos como presença viva. Porque o diálogo continua, embora a outro nível.
É-me difícil exprimir algo dessa alegria íntima e secreta. Pois, vista do exterior,
ela pode parecer triste, mesmo deprimente, uma vigília sem correspondência
aparente, tão lenta, tão longa. Tudo é tão subtil, tão fino. E eu sinto-o tão
presente. Ontem, por exemplo, demos-lhe banho. Sim, uma hora de bem-estar para
aquele corpo entorpecido, rígido de imobilidade, tão magro, tão descarnado. Uma
hora de afeição e ternura partilhada com Michèle, a enfermeira, e Simone, a
auxiliar. Com que doçura infinita rodeámos aquele corpo finalmente entregue com
confiança ao calor do banho! Três mulheres amantes ocupadas nessa tarefa, de
entre todas sagrada, que é o cuidado dedicado ao corpo de um moribundo. Porque
existe uma maneira de cuidar do corpo
que faz que se esqueça precisamente que se trata de um corpo arruinado, pois é
a pessoa, na sua integridade, que se envolve de ternura. Existe uma maneira de
cuidar de um moribundo que lhe permite sentir-se uma alma viva até ao fim.
Foi
assim que Bernard, que parecia tão exausto, já tão distante de nós, como que
acordou de um longo sono para depor um breve e doce beijo nas costas da minha
mão. Que alegria eu senti! Como é que aquele simples gesto me pôde embalar
assim? Sentia-me leve, feliz, viva. Um beijo muito breve numa mão molhada,
último sinal de afeição de um moribundo no seu banho. Sabes, a amizade foi a coisa mais importante para mim, são as
primeiras palavras de Bernard passadas vinte e quatro horas. Palavras apenas
audíveis abrindo um caminho difícil através de um corpo esgotado, exânime. São
também, mas eu só mais tarde o saberei, as suas últimas palavras.
É
noite. Decidi passá-la junto de Bernard. Reina a calma no serviço. A
enfermeira, pequena e rechonchuda, cheia de vitalidade e juventude, acaba de me
trazer uma tisana. Sentou-se a meu lado, tão delicadamente. Uma maneira de me
dizer: estou aqui, acompanho-te. As nossas cabeças tocaram-se por um momento, e
eu senti abordar as lágrimas, aquelas lágrimas que nos fazem bem, que aliviam o
coração. Aqueles que têm um gesto espontâneo de compaixão sem dúvida não sabem
o bem que fazem. Incitam, sem sequer saber, aqueles que assim tocam a
abandonar-se confiadamente aos movimentos das suas almas. Sim, sinto pena. Por
que não reconhecê-lo?
Contemplo
Bernard à luz um tanto fosca da lâmpada de cabeceira. Tem os olhos muito
abertos, mas não me vê. Grandes olhos fixos, que a magreza do rosto torna quase
aterradores. O seu peito descarnado, soerguido por uma respiração ruidosa e
caótica, e a minha mão tão suave quanto possível a tentar apaziguar-lhe a
violência. Os estertores dilacerantes, quando a garganta se bloqueia, e a
incerteza do que convêm fazer: chamar a enfermeira que vai introduzir uma sonda
e aspirar os mucos que se acumulam agora regularmente na traqueia? Impor assim
essa última agressão, necessária, todavia, se queremos evitar a asfixia?
Nunca
senti, de modo tão pungente, a impotência perante a necessidade de aplicar uma
técnica dolorosa. Que posso fazer senão envolver Bernard com toda a minha
imensa ternura por ele, enquanto a enfermeira actua? E em seguida massajá-lo,
acariciá-lo docemente para que volte a encontrar a calma. Às vezes ponho a
tocar a Ave-Maria de Schubert, e a
voz cálida de Jessie Norman, de que Bernard tanto gosta, envolve-nos a ambos. A
noite decorre assim lentamente, entrecortada por esses momentos de tortura incontornável.
Bernard está prestes a morrer, eu sei, há dezoito meses que se prepara para
isso. Porquê esta agonia?» In Marie Hennezel, Diálogo com a Morte,
Editorial Notícias, colecção Ciência Aberta, Lisboa, 1997/2002, ISBN
972-460-793-3.
Cortesia
de ENotícias/JDACT