sábado, 12 de setembro de 2015

Amizade. Amor. Eros na Ilíada. Maria Helena Pereira. «Será que dentre os homens mortais somente os Atridas amam as suas esposas? Ora todo o homem de bem e com senso ama a sua própria mulher, e com ela se preocupa…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quando, no princípio do Canto XVI, Pátroclo se prepara, vertendo lágrimas escaldantes, para lhe pedir que o deixe ir, com os Mirmidões, em socorro dos outros Aqueus, a primeira pergunta do herói é se terão vindo algumas notícias tristes da Ftia; mas logo procura tranquilizar-se:

Mas está ainda vivo, ao que se diz, Menécio, filho de Actor,
e vivo está Peleu Eácida entre os Mirmidões;
de ambos esses nos afligiria a morte, acima de tudo.

Este valor supremo da amizade encontra paralelos mais esbatidos na relação entre os dois jovens príncipes da Lícia, Glauco e Sarpédon, na cena patética em que o primeiro suplica a Apolo que o cure dos seus ferimentos, para impedir que o cadáver do segundo caia nas mãos dos Aqueus, ou mesmo na bonomia do símile em que os dois Ajantes, na sua actuação sempre concertada, são comparados a uma junta de bois que nunca se afastam um de outro; ou ainda na dedicação fraternal entre os dois Atridas, quer na ocasião em que Agamémnon, na aflição de ver Menelau ferido, lhe pega na mão a soluçar e só descansa quando Macaão vem tratá-lo, quer quando o rei de Esparta chega à assembleia dos chefes mesmo sem ser preciso chamá-lo, pois sabia no seu coração que o irmão estava a sofrer. Voltando a Aquiles, e reafirmando a ausência de conotações eróticas na sua relação com Pátroclo, as quais, tanto quanto sabemos, não entraram no mito anteriormente ao século V a.C., será a altura de perguntar qual a natureza, e sobretudo a profundidade dos seus sentimentos para com Briseida, e desta para com ele.
A revelação é feita aos poucos, discretamente, e no momento relevante, como é característico da arte homérica. Assim, quando os arautos de Agamémnon vão buscar Briseida à tenda de Aquiles, estão presentes, além daqueles, que não ousam sequer falar, Pátroclo, que cumpre as ordens do amigo, de entregar a jovem, e o próprio Aquiles. Apenas a voz deste se ouve, após o que:

… Pátroclo obedeceu ao seu querido companheiro.
Trouxe para fora da tenda Briseida de rosto formoso,
e entregou-a. Eles seguem ao longo das naus dos Aqueus.
Com eles avança a mulher, mau grado seu…

Mau grado seu, em grego, uma única palavra, que diz tudo. Só iremos ver de novo Briseida, e agora ouvi-la também, na sua lamentação ao avistar o cadáver de Pátroclo, que beija a chorar, lembrando, como tantos outros, a sua doçura. Fora ele que a consolara, no próprio dia em que principiara o seu cativeiro, prometendo-lhe que Aquiles faria dela sua esposa legítima e a levaria para a Ftia. Uma vã consolação, poderá perguntar-se? A resposta está no discurso com que Aquiles replica a Ulisses, por ocasião da embaixada por este conduzida:

Será que dentre os homens mortais somente os Atridas
amam as suas esposas? Ora todo o homem de bem e com senso
ama a sua própria mulher, e com ela se preocupa; tal como
eu a amava a ela de todo o coração, apesar de ser uma cativa.

Embora haja outras interpretações, julgo que os sentimentos pessoais de Aquiles já estavam a descoberto desde o momento do Canto I em que, a seguir à partida de Tétis, se diz que ele ficara irado, a pensar na mulher de bela cintura. O passo do Catálogo das Naus em que se refere a inactividade do herói e as razões que a determinam confirmam a existência deste tipo de motivação para o afastamento do combate. Lugar de primeiro plano ocupa, no entanto, o amor conjugal vivido em toda a sua plenitude. É o caso daquele que tem por protagonistas Heitor e Andrómaca. Num dos passos mais célebres do poema, o herói de casco faiscante, que fora a Tróia pedir à mãe que fizesse súplicas e oferendas a Atena, tal era a gravidade da situação do exército troiano, dirige-se a casa, à procura da mulher e do filho, pois não sabe se poderá tornar a vê-los. Encontra Andrómaca na muralha, nas Portas Ceias, perscrutando, ansiosa, o campo de batalha. Logo que o avista, vem ao seu encontro, seguida da ama com o filho nos braços. Ao ver a criança, Heitor sorri em silêncio. Andrómaca detém-se a chorar, junto dele. A cena vai decorrer, precisamente, entre risos e lágrimas, as duas faces da expressão dos sentimentos que unem os dois esposos em volta da figura da criança, semelhante a uma formosa estrela. Andrómaca implora-lhe que se lembre dela e do filho, pois em breve os Aqueus o derrubarão, impiedosos, e então:

…melhor seria para mim,
de ti privada, ir para debaixo da terra...

In Maria Helena Rocha Pereira, Amizade, Amor e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT