«(…) Vivien, com a cabeça envolta
numa vertigem de pensamentos, nem sequer se virou. Ouvia atrás de si o rodar do
carro cada vez mais perto, prestes a apanhá-lo! Como conseguiam seguir a tal
velocidade num caminho tão acidentado? Aquilo não eram cavalos, eram demónios
do inferno! As palavras do perseguidor não davam margem para dúvidas, devia
tratar-se de um emissário dos franco-juízes. Os Videntes queriam o Livro! E
estavam dispostos a tudo para o conseguir. Iriam torturá-lo até à loucura só
para saberem, só para saberem como atingir a sabedoria dos anjos. Antes a
morte! Com as lágrimas nos olhos, o fugitivo puxou os freios e incitou o corcel
a correr mais rápido. Mas o cavalo encostou-se demasiado à beira da ravina, e a
terra, amolecida pela neve e pela lama, deslizou sob o peso dos cascos. O
animal voou e Vivien voou com ele, precipitando-se, ambos, pela encosta abaixo.
Durante a queda, os gritos do monge, misturados com o relinchar dos cavalos,
ecoaram até se perderem no meio da tempestade. O carro parou. O sombrio
cocheiro desceu e perscrutou o precipício. Agora o único a saber é Ignazio de
Toledo, pensou. É preciso encontrá-lo. Levou a mão direita ao rosto, tateando
uma superfície demasiado fria e dura para pertencer a um rosto humano. Com um
gesto quase relutante, desapertou o cordão por debaixo do queixo e retirou a máscara
vermelha que lhe escondia o verdadeiro rosto.
O
Mosteiro dos Enganos
Quem era, na verdade, Ignazio de
Toledo, ninguém sabia dizê-lo ao certo. Por vezes era considerado sábio e
culto, outras vezes, desleal e necromante. Para muitos não passava de um
peregrino que vagueava de terra em terra em busca de relíquias que vendia aos
devotos e aos poderosos. Embora evitasse revelar as suas origens, os traços
mouriscos, mesmo que suavizados pela carnação clara, remetiam para os cristãos
que viviam em Espanha em contacto com os árabes. A cabeça totalmente rapada e a
barba cinzenta conferiam-lhe um aspecto doutoral, mas eram os olhos que atraíam
as atenções: duas esmeraldas verdes e penetrantes encastoadas entre rugas
geométricas. A túnica cinzenta que vestia, coberta por uma capa com capuz,
emanava a fragrância dos tecidos orientais impregnados dos aromas das inúmeras
viagens. Alto e magro, caminhava apoiando-se num bordão. Este era Ignazio de
Toledo e assim o viu, pela primeira vez, o jovem Uberto, quando, numa noite
chuvosa de 10 de Maio de 1218,
o pórtico do Mosteiro de Santa Maria del Mare se abriu. Por ele entrou uma figura
alta encapuçada seguida por um homem louro que se escondia por detrás de um
enorme baú.
Reconhecendo imediatamente o
forasteiro, o abade Rainerio de Fidenza, que acabara de recitar o ofício de
vésperas, foi ao seu encontro. Mestre Ignazio, há quanto tempo!, exclamou,
benévolo, abrindo caminho por entre as filas de monges. Recebi a notícia da
vossa chegada. Estava impaciente por voltar a ver-vos. Venerável Rainerio,
Ignazio esboçou uma vénia, deixo-vos como um simples monge e encontro-vos
abade. Rainerio era tão alto como o mercador de Toledo, mas mais gordo. Um nariz
aquilino dominava o seu rosto. Os cabelos castanhos e curtos caíam-lhe em cachos
desordenados pela testa. Antes de continuar, baixou os olhos e fez o sinal da cruz:
assim quis o Senhor. Maynulfo de Silvacandida, o nosso velho abade, faleceu no ano
passado. Uma grave perda para a nossa comunidade. A esta notícia, o mercador respondeu
com um suspiro de amargura. Não fazia fé na vida dos santos e não confiava nas propriedades
milagrosas das relíquias que com frequência transportava de terras longínquas.
Mas Maynulfo, esse, era com certeza
um santo. Nunca, nem mesmo depois de ter sido nomeado abade, renunciara à vida eremítica.
Costumava retirar-se periodicamente para um local fora do mosteiro para rezar, longe
de tudo. Nomeava um vigário, punha uma sacola a tiracolo e caminhava até chegar
a um ermo entre os canaviais da lagoa próxima. Aí, na solidão, cantava os
salmos e jejuava. Ignazio recordou a noite em que o conhecera. Nesses tempos, em
fuga desesperada, escondera-se precisamente nesse ermo. Maynulfo acolhera-o e oferecera-se
para o ajudar, e o mercador compreendera que podia revelar-lhe o seu segredo. Quinze
anos se passaram e naquele momento a voz de Rainerio ressoava aos seus ouvidos
dissipando as recordações: morreu no ermo, não resistiu aos rigores do Inverno.
Todos insistíamos para que fizesse o retiro na Primavera, mas ele dizia que o Senhor
o chamava para o recolhimento. Decorridos sete dias encontrei-o morto na sua cela.
Do fundo da nave, o suspiro amargurado de alguns monges fez-se ouvir.
Mas dizei-me, Ignazio, continuou Rainerio,
reparando na tristeza que se apoderara do mercador, quem é o companheiro
silencioso que vos acompanha? O abade observava o homem louro que se mantinha
de pé ao lado do mercador. Muito jovem, para dizer a verdade. Os cabelos compridos,
ligeiramente ondulados, emolduravam-lhe o pescoço pousando depois nas costas robustas.
Os olhos azuis pareciam os de um rapazito, mas os contornos do rosto eram
marcados, esculpidos pela expressão rígida dos maxilares. O homem deu um passo em
frente e fez uma ligeira inclinação para se apresentar. Falou com o acento da langue d'oc, marcado por uma cadência
imprecisa e exótica: Wilialme de Béziers, venerável padre. O abade sobressaltou-se.
Sabia muito bem que a cidade de Béziers fora o covil de uma seita de hereges. Deu
um passo atrás e fitou o desconhecido, sussurrando entre os dentes: Albigenses…»
In
Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene
Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
Cortesia
CAutor/JDACT