Recontro em Mofatra
«(…) Entretanto,
Gonçalo havia chegado à casa dos Maia, após uma desenfreada jornada desde
Mofatra. O solar, imponente e de linhas rudes, repousava praticamente oculto no
escuro da noite. Alumiava-o uma pequena fogueira no pátio e uma frágil
claridade proveniente do interior. Fora da casa, o ambiente agitou-se com a
entrada intempestiva do fidalgo, que nem a ordem de paragem, ao portão,
admitiu. Das casas próximas saíram imediatamente dois homens, direitos ao
cavaleiro, de lança em punho, que só pararam junto dele, em atitude ameaçadora.
Deixai-me, vociferou Gonçalo, mostrando-se. Os dois homens sossegaram as armas
e saudaram o fidalgo, que replicou de imediato: fechai o portão e ficai de
atalaia. Anoite está violenta e todo o cuidado é pouco! Apeou-se rapidamente,
confiou a montada a um lacaio e dirigiu-se ao salão da casa. Franqueou a entrada
com alarde e deu com o irmão, Soeiro, sentado à mesa, embrenhado na apreciação
de um pequeno mapa. Gonçalo pingava.
Vindes
transtornado e receoso! Que tempestade é essa?, perguntou Soeiro, figura forte
de semblante sereno e de olhar acutilante, enquanto cravava novamente os olhos
no mapa. Gonçalo dirigiu-se à lareira do salão. Aproximou as mãos geladas do
lume e respondeu: Já vos dou novas, irmão. Acreditai que a jornada não foi
prazenteira. Se continuar com este fado, não tardareis a estar à beira da minha
sepultura... O irmão pouco caso fez da sentença. Estava habituado aos desmandos
de Gonçalo que, sendo mais novo, estouvado e provocador, se via com frequência
em situações pouco edificantes e assaz perigosas. Apesar da sua notável envergadura,
aliás comum aos Maia, era folgazão, mas implacável, brejeiro, porém
contundente. De feições rudes, olhar vivo e atento, desde cedo enveredara por
manifestações temerárias. A arte da peleja, sinal dos tempos, aprendera-a com
primos mais velhos.
Do pai, Mendo Gonçalves, guardava
a memória de um homem enérgico e jubiloso. Tal como Bernardo, nas suas
primeiras duas décadas, Gonçalo era notado como licencioso e agitador. Organizava
habitualmente os seus momentos como derradeiros, consumindo-os até os esgotar,
por vezes, com aparato excessivo. Outrora, diria que teríeis companhias
nefastas, que justificavam os vossos exageros. Acaso, agora, estais a arriscar
por conta própria?, inquiriu Soeiro, entre sarcasmos. Mas hoje, enfatizou,
estais mais ansioso do que é costume... Referia-se, antes, aos tempos em que
Bernardo era o instigador de tais dislates, arrastando Gonçalo para aventuras
desbragadas e duvidosas, ainda que, por vezes, também por si partilhadas.
Contudo, nesse aspecto, Soeiro era diferente do irmão. Mais cordato,
compenetrado e fleumático, planeava o quotidiano com prudência e, sobretudo,
informação adequada. Não era tão alto como o irmão, mas sabia impor a sua
presença. Ombreava com ele em denodo, mas defendia a diplomacia como solução
para o esclarecimento de problemas. Tendo nascido cinco anos antes de Gonçalo,
coubera-lhe organizar a casa após a morte do pai. Era o interlocutor
privilegiado dos notáveis portucalenses e porta-voz dos seus anseios políticos».
In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089,
Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.
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