«Durante
trezentos e vinte e sete anos, da eleição de Hugo Capeto até a morte de Filipe,
o Belo, somente onze reis se
sucederam, deixando todos um filho para receber a coroa de França. Dinastia
prodigiosa, que o destino parecia ter marcado para a durabilidade e para a
permanência! Entre aqueles onze reinos, só dois cobriram um período menor que
quinze anos. Aquela extraordinária continuidade no exercício e na transmissão
do poder, tinha permitido, e talvez mesmo determinado, a formação da unidade
nacional. O vínculo feudal, puramente pessoal de vassalo para suserano, do mais
fraco para o mais forte, ia sendo substituído progressivamente por outro
vínculo, por aquele outro contrato que une os membros de uma vasta comunidade
humana, por muito tempo submetida às mesmas vicissitudes e às mesmas leis. Se a
ideia de nação ainda não era evidente, seu princípio, sua representação, já
existiam na pessoa real, fonte suprema de autoridade e supremo recurso. Quem
pensasse em, o rei, pensava também em,
a França. E Filipe, o Belo, durante toda a sua vida,
aplicara-se em cimentar aquela unidade nascente, pela forte centralização
administrativa e pela destruição sistemática dos poderes exteriores ou
particulares.
Ora, mal o
Rei de Ferro desapareceu, seu filho Luís X o seguiu ao túmulo. O povo,
diante daquelas duas mortes sobrevindas uma após a outra, ferindo reis em plena
força da vida, não podia deixar de ver nisso o signo da fatalidade. Luís X, o Turbulento, reinara dezoito meses,
seis dias e dez horas. Não fora necessário mais tempo àquele lastimável monarca
para arruinar em grande parte a obra de seu pai. Durante o seu governo, a
rainha fora assassinada e o primeiro-ministro enforcado. A fome assolara a
França, duas províncias revoltaram-se, um exército inteiro afundou-se na lama
da Flandres. A alta nobreza retomava a dianteira sobre o poder real, a reacção
era todo-poderosa e o tesouro estava a seco. Luís X ascendera ao trono quando o
mundo estava sem papa, e partia sem que se tivesse ainda chegado a um acordo
sobre a escolha de um pontífice. Deixava a cristandade à beira do cisma. Agora,
a França estava sem rei.
Porque, de
seu casamento com Margarida de Borgonha, Luís X deixava apenas uma filha de
cinco anos, Joana de Navarra, sobre a qual pesavam fortes suspeitas de
bastardia. De seu segundo casamento ficava somente uma esperança: a Rainha
Clemência estava grávida, mas só daria à luz dentro de cinco meses. Enfim,
dizia-se, abertamente, que o Turbulento
fora envenenado. Nada tendo sido previsto para a organização da regência, as
ambições pessoais atirar-se-iam ao assalto do poder. Em Paris, o conde de
Valois tentava fazer-se reconhecer como regente. Em Dijon, o duque de Borgonha,
irmão de Margarida, a assassinada, e chefe de poderosa liga baronial, ia
empreender a vingança da morte de sua irmã, fazendo-se campeão dos direitos de
sua sobrinha. Em Lion, o conde de Poitiers, primeiro irmão do Turbulento, via-se envolvido nas intrigas dos cardeais e
esforçava-se inutilmente por obter uma decisão do conclave. Os flamengos só
aguardavam ocasião propícia para retomar as armas, e os senhores d’Artois
continuavam sua guerra civil. Seria preciso tanto para que a memória do povo
recordasse o anátema lançado pelo grão-mestre dos Templários, dois anos antes,
do alto de sua fogueira? Numa época disposta às crendices, não seria difícil
perguntar, a si próprio, naquela primeira semana de Junho de 1316, se a raça dos Capetos não
estaria, dali por diante, maldita.
A
Rainha Branca
As rainhas
usam luto branco. Branca, a faixa de tecido fino que envolvia o pescoço,
aprisionando o queixo até a boca e deixando aparecer apenas o centro do rosto;
branco, o grande véu que cobria a fronte e as sobrancelhas; branco, o vestido
fechado nos punhos e tombando até os pés. Esse era o trajo quase monacal que
acabava de vestir, provavelmente pelo resto da vida, a rainha Clemência da
Hungria, viúva aos vinte e três anos do rei Luís X, depois de dez meses de
casamento. Dali por diante ninguém mais veria seus admiráveis cabelos de ouro,
nem o oval perfeito de seu rosto, nem aquele brilho, aquele tranquilo
esplendor, que tinham impressionado os que dela se aproximavam, e tornado
célebre a sua beleza. A máscara estreita e patética, que se recortava agora
entre aqueles linhos imaculados, trazia a marca das noites de insónia e dos
dias de lágrimas. O próprio olhar modificara-se: não se fixava em nada de preciso,
e parecia flutuar à superfície dos seres e das coisas. A bela rainha Clemência
já assumira o aspecto que teria a sua estátua jacente.
Entretanto,
sob as pregas de seu trajo, nova vida se ia formando. Clemência esperava um
filho, e o pensamento de que seu esposo jamais o conheceria obsecava-a. Se Luís
tivesse vivido ao menos o bastante para vê-lo nascer!, dizia consigo. Cinco
meses, somente cinco meses mais! Como ficaria alegre, especialmente se fôr
homem... Por que não fiquei grávida desde nossa noite de núpcias!... A rainha
voltou a cabeça, com um gesto frágil, para o conde de Valois, que, em passo de
galo gordo, andava de cá para lá através do aposento. Mas por que, meu tio, por
que haviam de envenená-lo tão perversamente?, perguntou ela. Não praticava todo
o bem que podia? Por que procurais sempre a perfídia dos homens onde, sem
dúvida, é a vontade de Deus que se manifesta?» In Maurice Druon, A Lei dos
Varões, 1957, tradução de Nair Lacerda, Gótica, colecção Cavalo de Tróia, 2006,
ISBN 978-972-792-167-6.
Cortesia
de Gótica/JDACT