terça-feira, 29 de setembro de 2015

A Rapariga que Roubava Livros. Markus Zusak. «Seguiu-se o portão, a que ela se agarrou. Irrompeu-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enquanto ela resistia e recusava ir para dentro. Começaram a juntar-se pessoas na rua…»

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Coragem nascida das palavras
«(…) Quem quer que tenha dado o nome à rua Himmel possuía indiscutivelmente um saudável sentido de ironia. Não que ela fosse um inferno. Não era. Mas, c’os diabos, também não era o céu. Seja como for, os pais de acolhimento de Liesel aguardavam. Os Hubermann. Estavam à espera de uma rapariga e de um rapaz e ser-lhes-ia paga uma pequena pensão por os receberem. Ninguém queria dizer a Rosa Hubermann que o rapaz não sobrevivera à viagem. De facto, nunca ninguém lhe queria verdadeiramente dizer nada. No que se refere a temperamento, o dela não era realmente invejável, embora os seus antecedentes com crianças de acolhimento fossem bons. Aparentemente, metera vários na ordem. Para Liesel, foi uma viagem de automóvel. Ela nunca entrara num. Havia a subida e descida constantes do seu estômago, e as esperanças fúteis de que eles se perdessem ou mudassem de ideias.
No meio de tudo isso, não conseguia evitar que os seus pensamentos se virassem para a mãe, de volta à Bahnhof, à espera para partir de novo. A tiritar. Embrulhada naquele casaco inútil. Estaria a roer as unhas, à espera do comboio. A plataforma seria comprida e desconfortável, uma fatia de cimento frio. Procuraria descortinar o local aproximado da sepultura do filho na viagem de regresso? Ou seria o sono demasiado pesado? O carro movia-se, com Liesel antecipando, apavorada, a última e letal volta. O dia estava cinzento, a cor da Europa. Em redor do carro cerravam-se cortinas de chuva. Quase lá. A senhora da assistência, frau Heinrich, virou-se e sorriu. Dein neues Heim. O teu novo lar. Liesel limpou um círculo no vidro embaciado e olhou para fora. Os edifícios parecem grudados, na sua maioria casas pequenas e blocos de apartamentos com ar nervoso. Há neve lamacenta espalhada como uma alcatifa. Há cimento, árvores como cabides de chapéus vazios, e ar cinzento.
Havia também um homem no automóvel. Ficou com a rapariga enquanto frau Heinrich desaparecia lá dentro. Nunca falou. Liesel partiu do princípio de que ele lá estava para garantir que ela não fugiria ou para a obrigar a entrar à força se ela lhes levantasse problemas. Contudo, mais tarde, quando começaram de facto os problemas, ele limitou-se a ficar ali sentado, a observar Talvez ele fosse apenas o último recurso, a solução final. Após alguns minutos, surgiu um homem muito alto. Hans Hubermann, o pai de acolhimento de Liesel. De um dos seus lados vinha a estatura mediana de frau Heinrich. Do outro, a forma atarracada de Rosa Hubermann, que parecia um pequeno guarda-roupa com um casaco atirado para cima. Tinha um andar nitidamente bamboleado. Quase engraçado, se não fosse a cara, engelhada como cartão amarrotado e expressando aborrecimento, como se ela apenas tolerasse tudo aquilo. O marido caminhava direito, com um cigarro aceso entre os dedos. Era ele que os enrolava. O facto era este: Liesel recusava sair do automóvel.
Was ist los mit dem kind?, indagou Rosa Hubermann. E repetiu. O que se passa com esta criança? Enfiou a cara dentro do carro e disse: vá, anda, anda. O lugar da frente foi empurrado para diante. Um corredor de luz fria convidava-a a sair. Ela não conseguiu mover-se. Lá fora, pelo círculo que traçara, Liesel via os dedos do homem alto, ainda a segurarem o cigarro. Da ponta deste caiu cinza que pairou e se ergueu diversas vezes até atingir o solo. Demorou quase vinte minutos a convencê-la a sair do carro. Foi o homem alto que conseguiu. Serenamente.
Seguiu-se o portão, a que ela se agarrou. Irrompeu-lhe dos olhos uma torrente de lágrimas enquanto ela resistia e recusava ir para dentro. Começaram a juntar-se pessoas na rua até Rosa Hubermann as invectivar, após o que elas deram meia-volta e regressaram por onde tinham vindo. Para onde é que estão a olhar, seus bardamer…? Por fim, Liesel Meminger dirigiu-se cautelosamente para dentro. Hans Hubermann segurava-lhe uma das mãos. A sua pequena mala segurava-a ela com a outra. Enterrado entre a camada de roupas dobradas nessa mala encontrava-se um pequeno livro preto que, tanto quanto sabemos, um coveiro de catorze anos, numa cidade sem nome, passara provavelmente as últimas horas a procurar. Juro, imagino-o a dizer para o patrão, que não faço a menor ideia do que lhe aconteceu. Procurei por toda a parte. Toda a parte! Estou certa de que ele nunca suspeitaria da rapariga e todavia ali estava, um livro preto com palavras prateadas escritas contra o tecto das suas roupas: um Guia em Doze Passos para Cavar Sepulturas com Êxito. Editado pela Associação de Cemitérios da Baviera. A rapariga que roubava livros atacara pela primeira vez, o início de uma carreira ilustre». In Markus Zusak, 2005, A Rapariga que Roubava Livros, tradução de Manuela Madureira, Editorial Presença, Lisboa, 2014, ISBN 978-972-233-907-0.

Cortesia de EPresença/JDACT