O Primeiro Voo do Falcão
«(…) Alcácer cai em
poder dos Portugueses em 23 de Outubro. Alcácer é um porto pequeno,
insignificante. Afonso não ficou muito orgulhoso da vitória. E Tânger? Porque
não Tânger? Essa sim, imensa, branca, em frente daquela baía de mar azul limpo,
essa era a cidade dos seus sonhos! Mas o tio-avô sabia o sangue que custaria
tal empresa. Que ficasse para outra ocasião! Afonso e Fernando
aceitaram o conselho mas não desistiram da ideia. Deixaram em Alcácer Ceguer, como
governador, Duarte Menezes, primeiro conde de Vila Real. Marrocos tomara-lhes
os corações. Os dois irmãos, o Rei e o infante Fernando, enchiam a cabeça de
projectos e ambições. Fernando, esse, ia ser pai em breve,
pois deixara a mulher de esperanças! Em 8 de Dezembro nascia-lhe uma filha em Beja,
a quem puseram o nome de Leonor e cujo rosto belo, branco e rosado, orlado de
cabelos alourados e já estriados de branco, eu recordo da derradeira vez que a
vi, antes da partida, da minha partida para o Algarve, há precisamente seis
anos.
Com o regresso do Rei à
pátria, e nas embarcações com o saque e os escravos, de mistura com outros
prisioneiros mais ilustres, veio um casal de judeus. Ele fora juiz em Mazagão,
chefe da comunidade, embora ainda jovem, e ela nascera precisamente em Alcácer.
O marido aí a conhecera e aí casara com Rebeca, exercendo na cidade da mulher a
sua profissão de físico na comunidade judaica e fora dela se necessário. Conhecendo
bem o Hebraico, o Português, o Árabe, o Castelhano e o dialecto Siciliano, fora
uma perfeita aquisição. Afonso gostou daquele homem alto, de
forte compleição, olhos claros e tez branca. Chamava-se Isaac ben Iacoub
e à altura da conquista portuguesa já não exercia actividades políticas como o
fizera em Mazagão, onde era conselheiro e cobrador de impostos do governador
árabe da fortaleza. Mestre Isaac foi aprisionado, mas por pouco tempo. O Rei
simpatizou com ele, além do mais, era bom médico e estudioso das Escrituras.
Veio para Lisboa onde nunca viveu na judiaria, tendo sempre tido direito a casa
própria.
A mulher, Rebeca Bueno,
cuja família fora para o Norte de África por via de Alexandria, descendia de um
forte ramo da Espanha há séculos, da semente do velho e estimado médico Abraham
Bueno, e os familiares haviam-se espalhado por Toledo, Maiorca, onde estudavam
Astronomia e Cartografia, por Córdova, onde se dedicavam ao comércio e outros ainda
tinham emigrado para Veneza, Bolonha e Siena. Diziam-se descendentes de David e
dos Macabeus (Ramo de Jonathan). Era uma história antiga como a de todos os
Judeus, que são o Povo da Memória. Fizeram parte da minha vida. Descobri
um dia, tinha eu vinte anos, que ainda era primo do marido de Rebeca. Isso
salvou-me de muita coisa mas arrastou-me também para um destino que não
desejei. Por ora, fiquemos por Isaac ben Iacoub, que acabou, mais tarde, já era
adolescente o príncipe João, por se baptizar. Em 1477 já tomara outro nome. Era conhecido por mestre João Paz,
médico. O Rei oferece-o ao Príncipe João, que gosta dele e o dá como médico à
esposa, dona Leonor. Esta, por sua vez, coloca o famigerado médico, então com quarenta
e sete anos, ao serviço do seu jovem irmão, Diogo, que será duque de
Viseu.
Todas as peças do tabuleiro estavam lançadas. O jogo iria começar logo após o casamento
do príncipe João com a prima dona Leonor, nascida em Beja no ano da tomada de
Alcácer e, depois, após a morte do bom rei Afonso, quando ia nos seus quarenta e
nove anos, em Sintra. A actuação de mestre Isaac ben Iacoub foi muito útil para
o Rei. Como paga do bom tratamento, mestre Isaac forneceu a situação
pormenorizada de todas as fortalezas e cidades costeiras do Norte de África, a
situação dos governadores que se achavam em luta com o governo central, número
de forças efectivas, períodos de substituição, número e quantidade de armamento
e mantimentos. Tudo expôs e desenhou, ele e seus amigos e familiares,
parentes da mulher e irmãos dele, já que, para sua infelicidade, não teve
filhos. Rebeca era estéril. Mais tarde, depois do baptismo, ela recebeu, em
honra da falecida rainha mãe do príncipe, o nome de Isabel. E Paz, pela devoção
do jovem casal principesco à Virgem do mesmo nome». In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
Cortesia de EPresença/JDACT