Os
estados do silêncio
«(…) Tantos silêncios! Existe
também o da esfinge, o silêncio dos perfumes, odores e cores, o silêncio da
cerimónia do chá, o silêncio da noite e dos sonhos, o silêncio de cada gesto. O
silêncio das estações e dos seus dias. O silêncio é tão importante como respirar.
E, de qualquer modo, tão essencial como o sono. Ao escrever estas linhas, a aurora
ergue-se sobre uma paisagem de neve. Branca, ela ilumina a noite com um brilho
único, tingindo-se lentamente com as cores do amanhecer. Ao levantar-me por
volta das cinco, senti de imediato um silêncio acolchoado. E, ao olhar pela
janela, não fui surpreendido pela sua presença. A neve irradia na verdade um
ambiente que não se assemelha a mais nada. Abafa os sons. A neve poisa no
espaço, invade-o, metamorfoseia-o. Ela é pura poesia, na sua alvura. Ela
irradia calma. Neve.
É antes de mais uma imagem, um
prazer infantil. Uma imagem de um livro ilustrado, um conto de Inverno no qual
era agradável encontrar refúgio. Todos nós devemos ter uma lembrança
semelhante, a de uma casa com o telhado nevado, sabem, aqueles tectos pesados
com uma tal espessura de neve que esta os cobre totalmente com as agulhas de
gelo que pendem do algeroz escondido e as árvores em volta, fantásticas formas
vestidas de branco. Vivi durante a minha infância dez anos na Turquia, em
Ancara, a cidade situada num planalto a mil metros de altitude. De Dezembro a
Fevereiro vivíamos debaixo de uma camada de pelo menos um metro de neve, até
começar um degelo brutal e uma Primavera quente se começar a fazer sentir. Os
meus primeiros deslumbramentos com a neve datam dessa altura e, graças à
importante colónia americana ali se encontrava, os bonecos de neve com olhos de
carvão, gorro de caçarola e nariz de cenoura cruzaram-se de imediato com o rico
folclore de Walt Disney, do qual eu me tornei, como os meus pequenos camaradas
americanos. Ninguém melhor do que ele soube glorificar a magia da neve. E os
contos eslavos da minha mãe contribuíram para o feitiço que sempre experimentei
face a este pó gelado. Para mim, o Natal também se liga ao Christmas anglo-saxónico, e o maravilhoso silêncio que reinava na
casa, de manhã, antes de ir procurar os presentes debaixo do grande pinheiro
decorado com bolas multicolores e velas verdadeiras, ô Tunnenbaum, continua a ser o mais belo do mundo. Foi certamente
aí, enquanto criança, que percebi o silêncio de maneira intensa, que descobri a
sua imensidão e a sua força. Na madrugada de cada Natal.
Com os rigores dos Invernos, vinham
os lobos rondar as habitações e o bairro residencial, que se situava numa
colina com vista sobre a cidade, ao lado dos campos. Julguei ouvir muitas vezes
os lobos esfaimados uivarem, errando sobre a vastidão gelada. Mas a neve tem
uma tal força de inércia, que o silêncio cedo retomava o seu papel
preponderante. A neve favorece o silêncio, transporta-o por entre os sons que
primeiro destaca, e depois engole. Também gosto da neve que cai. É menos
silenciosa que a paisagem de neve, emitindo sempre uma espécie de rumor, um
rugido suave, ouvimo-la cair quase sem a escutar. Mas este pedaço de céu que se
desfaz em flocos brancos isola-nos do mundo e dos seus ruídos. A neve é silêncio branco. Passámos
alguns dias a esquiar. O prazer de deslizar sobre a neve em direcção aos
abismos das montanhas imaculadas que se recortam no céu azul-vivo. Descendo a
encosta, de frente para elas, quase sozinho na pista naquele Março profundo,
existe apenas o som de ripas tecendo trilhos na neve fresca, chiar que nada
mais faz do que realçar o grandioso silêncio daquelas montanhas geladas. Somente
um pássaro lança um brado, de vez em quando, ao cruzar o azul». In
Marc Smedt, Elogio do Silêncio, 1986, Sinais de Fogo Publicações, tradução de
Sérgio Lavos, colecção XIS (livros para pensar), Público, 2003, ISBN
989-555-029-4.
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