Os
anos da inocência, 1944-1974
«(…) Apesar do impacto da cultura americana na
minha formação e das insistências da minha família
americana, só não fiquei então nos Estados Unidos por me recusar a fazer serviço
militar, que me obrigaria a um estágio
na Guerra do Vietname. Após o meu regresso a Portugal em finais de 1963, senti que a obsessão com as
guerras coloniais tinha mergulhado o nosso país num clima de indescritível
isolacionismo e histeria. Senti enorme dificuldade em falar com as pessoas da
minha geração, para quem falar das minhas experiências na América era o mesmo
que falar de ficção científica. Anos mais tarde, viria a notar a curiosa
coincidência de Humberto Delgado, cuja campanha eleitoral tanto marcara as
minhas opções políticas, também ter compreendido pela primeira vez o
significado da democracia durante a sua estada nos Estados Unidos. Após a
inspecção militar consegui autorização para uma viagem a Inglaterra de onde
decidi não regressar a Portugal. Tinha então vinte anos e aquele país vivia um
excitante período de euforia libertária e de criatividade. O governo
trabalhista de Harold Wilson, de que James Callaghan era então ministro do
Interior, fechava os olhos aos que se recusavam a participar na Guerra do
Vietname e, no caso português, nas guerras coloniais. Embora normalmente não
oficializasse a concessão de asilo político aos refractários e desertores norte-americanos
e portugueses que iam chegando à Grã-Bretanha, permitia o prolongamento dos
seus vistos de estada, mesmo com passaportes caducados, até que ao fim de
quatro anos pudessem ser considerados residentes naquele país. No seio dos portugueses,
onde proliferavam minúsculos grupos de extrema-esquerda, a única actividade
democrática de relevo organizava-se então, sem exigências de rigidez
político-partidária, à volta do jornalista e escritor António Figueiredo, antigo
companheiro de Humberto Delgado e mais conhecido pelas suas crónicas na BBC.
Pessoa muito respeitada por ingleses e portugueses em geral, foi graças à
amizade que estabeleci com ele e aos seus contactos com o Labour Party
que foi possível criar, em Londres, o primeiro núcleo organizado da Acção Socialista Portuguesa no
estrangeiro. Mas, apesar da sua desinteressada colaboração e de se considerar
socialista, António Figueiredo nunca aderiria à Acção Socialista e só entraria
para o Partido Socialista após o 25 de Abril. O primeiro núcleo de
Londres da Acção Socialista foi lançado no início de 1970 por mim, com Alberto Lagoa, Carlos Alves, Pedro Ferreira Almeida,
Eduardo Silva e, mais tarde, Aurea Rego, José Neves e Seruca Salgado.
Em Roma estavam Tito Morais e Gil Martins,
em França Mário Soares, Ramos Costa, Coimbra Martins, Liberto Cruz e, mais
tarde, Jorge Campinos e, na Bélgica, Bernardino Gomes. O Fernando Loureiro
vivia na Suíça e na Alemanha estavam o Carlos Novo, o Desidério Lucas do Ó, o
Carlos Queixinhas e o Gomes Pereira. Em 1971
fui viver para a Suécia onde lançaria um novo núcleo com metalúrgicos da construção
naval dos estaleiros da Kockums, entre os quais Mário Nobre, Armindo Carrilho e
o José Matos. Estes e mais ou menos meia centena de pessoas residentes em
Portugal constituíam então a totalidade do movimento socialista português embora,
anos mais tarde, num sintomático gesto da grande maleabilidade histórica que tem
caracterizado o Partido Socialista, a lista de fundadores fosse refeita para
não ferir susceptibilidades, passando a integrar cento e onze nomes. Foi-me
então atribuído o número quarenta e três, embora à data da minha adesão não
existissem na ASP, que precedeu o Partido Socialista, mais de vinte elementos.
A corajosa campanha de Humberto Delgado, no
final dos anos 50, criara uma grande esperança no seio da maioria dos
portugueses. Era a primeira vez, desde o fim da II Guerra Mundial, que
simultaneamente o ditador Salazar, o Partido Comunista e a generalidade
dos portugueses verificavam ser possível substituir a ditadura por um regime
pluralista, semelhante ao dos outros países da Europa Ocidental. A humilhante expulsão
de Portugal de Goa, Damão e Diu em 1961e
o início das lutas armadas de libertação na Guiné, em Angola e Moçambique, em
simultâneo com a ignorante teimosia de Salazar em não querer compreender os ventos de mudança da descolonização, conduziriam
inevitavelmente ao êxodo de dezenas de milhares de jovens portugueses para uma
oposição activa à ditadura, longe do alcance da polícia política (PIDE),
e ao crescente isolamento internacional do país. Por outro lado, a crescente
contestação maoista ao comunismo soviético viria a pôr fim ao monopólio que o PC detinha sobre a
oposição portuguesa. Existiam, finalmente, condições para o aparecimento de um
partido socialista em Portugal, apesar do clima político, então dominado pela
histeria do terrorismo no Ultramar,
não parecer favorável à criação de estruturas organizadas. O nascimento da Acção
Socialista, em 1964, representa
assim um acto de grande intuição política, que só a dedicação militante de
Manuel Tito Morais, a generosidade e os contactos internacionais de Francisco
Ramos Costa e o conhecido optimismo de Mário Soares possibilitariam. Os ataques
de que foi alvo do PC, dos inúmeros grupos de extrema-esquerda e do próprio
governo, indicavam a importância que tal passo representara». In Rui
Mateus, Contos Proibidos, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1996, ISBN
972-20-1316-5.
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