Sancho
II e dona Mécia
«(…)
Uns lembravam que era fruto dum casamento reprovado pela Santa Madre Igreja.
Outros assinalavam que, ao contrário da tradição, não fora formalmente
investido na passagem do ceptro real. Acrescentava-se a juventude com que
subira ao trono, pouco mais do que uma criança, decerto mal aconselhada por
tutores interesseiros e corruptos. Tudo valia para tentar retirar a Sancho II a
legitimidade como soberano. Por volta de 1240,
já conquistado todo o Alentejo, Sancho ia agora dedicar-se a arranjar mulher, e
a conseguir a derradeira acha para a fogueira. A fogueira onde ele próprio
arderia… Não era previsível que a história pessoal de dona Mécia Lopes Haro,
filha de Lopo Dias Haro, um dos mais influentes fidalgos hispânicos da época, e
neta de Afonso IX de Leão, viesse algum dia a cruzar-se com o destino de
Portugal. Casara, em 1231, com Álvaro
Peres Castro e o episódio mais curioso que se contava acerca da vida que até
então levara conta que, certa vez, estando o marido ausente em combate com os
seus soldados, se viu cercada pelos mouros no Castelo de Martos, perto de Córdova.
Sozinha com as aias, ter-se-ia vestido a si mesma e a elas com armaduras e
subido às ameias da fortificação. Julgando ver o castelo, ao contrário do que
garantia a informação que haviam recebido, vigiado por um numerosa guarnição, os
mouros teriam dado meia-volta e partido, vindo a ser mais tarde interceptados e
vencidos por Álvaro Castro. Os planos de vida de dona Mécia só mudariam depois
e abruptamente: o marido morre de forma inesperada em 1239.
Viúva, a mulher que ainda era
descendente, pelo lado da mãe, de Afonso Henriques, voltará a casar. O
escolhido era nem mais nem menos do que Sancho II, rei de Portugal e seu primo.
Sancho repetia o crime de que o pai fora acusado: um casamento contra a lei da
Igreja, incestuoso e, para dizer o mínimo, provocador. Num ambiente de
crescente agitação social, em boa parte justificado pelos desequilíbrios
resultantes dum crescimento demográfico que tentava acompanhar a galopante expansão
do território nacional, chegaria a estocada final. Nobres e prelados
portugueses reúnem-se para exigir a deposição do rei. Mas essa era apenas a primeira
parte do problema; a segunda era: e quem lhe sucederia? Sancho II era bisneto de
Afonso Henriques, neto de Sancho I e filho primogénito de Afonso II; pondo em causa
a legitimidade deste rei, que restaria? Onde se encontraria outro cuja escolha não
corresse o risco de fracturar ainda mais Portugal, em vez de o unir? O papa recomendava
que, para já, se encontrasse um governador
e defensor do reino; alguém activo e prudente que pudesse assegurar a restauração
daquele território vicioso, e que esse alguém só poderia ser o infante Afonso, irmão
mais novo de Sancho II a viver há alguns anos em França, onde era casado com a condessa
de Bolonha, porque, naquele tempo, nada restava nos solos pátrios aos segundos filhos,
de modo que o melhor era emigrar.
Pouco
tempo passado e já em Paris, uma comitiva nacional apresentou a proposta a Afonso
e ouviu do outro lado o juramento de que tudo faria cumprir conforme o acordado
e que à Igreja restituiria tudo aquilo que tão levianamente seu irmão havia tirado:
privilégios, foros e costumes de municípios, cavaleiros, padres, bispos e monges,
todos tudo teriam de volta. Um verdadeiro candidato em campanha eleitoral. Estávamos
em 1245. Sancho II tinha sido formalmente
deposto, mas continuava no lugar, tal como já antes havia sido excomungado sem que
isso parecesse interferir, de alguma forma, no seu comportamento. Afonso lembrava
então urna questão pertinente: era preciso que fosse rei único e incontestável.
Se acaso o irmão deixasse descendência, haveria sempre quem defendesse a legitimidade
de essa criança subir ao trono, e Afonso parecia não querer sujar as mãos. Não para
já. De modo que lembrou ao papa uma questão, um pormenor, coisa de nada: Sancho
e Mécia eram primos, acaso não haveria matéria para anular esse casamento
hediondo? Compreendendo na plenitude, as preocupações de o Bolonhês, determinou então Inocêncio IV a nulidade daquele matrimónio
medonho e contranatura (?)».In Alexandre Borges, Histórias Secretas de
Reis Portugueses, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-46-2131-9.
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