«(…) Atada num molho informe, atiraram-na
para dentro do caixão escalavrado que, porém, não se deslocara um palmo que fosse
da sua posição original. Depois, taparam com cuidado a cova com a terra que haviam
colocado sobre a tela estendida ali à beira, repuseram no lugar as pedras que
haviam afastado, alisaram a superfície do solo para disfarçar a sua presença e observaram
tudo uma derradeira vez até se darem por satisfeitos. Tinham razão para tal contentamento,
valha a verdade, que quando a manhã chegasse ninguém poderia dizer que por ali,
nessa noite, alguém estivera a retirar corpos do que era suposto ser a sua última morada. Um belo eufemismo, porventura,
mas que de novo não lembrou a nenhum dos dois, tão alheios que eram à gramática
como à filosofia. Ben Crouch ainda pensou em ordenar ao jovem vigilante que os ajudasse
a transportar o corpo para a carroça, que uma vez mais os seus rins se revoltavam
com a perspectiva de uma nova canseira. Porém, para não dar sinais de velhice
ou de fraqueza, nada disse; antes lhe murmurou, à laia de piada, qualquer coisa
num idioma alatinado que o rapaz não percebeu, de tal forma fora a frase proferida
num tão mal-amanhado estrangeirismo. Crouch riu-se da sua fraca exibição
linguística e agarrou nas pernas do cadáver enquanto Naples se afadigava com o peso
do tronco e da cabeça. Felizmente o corpo pertencia a um ajudante de tanoeiro tão
magro e tão leve como compete a qualquer pobre.
Quanto ao moço vigilante, que há muito
deixara de coçar a cicatriz da testa que a linha do cabelo disfarçava, coube
carregar o gancho, as gazuas, as pás, a lanterna e a corda a tiracolo, enquanto
constatava que em torno não se via ninguém que os pudesse importunar. Mesmo assim,
tremia. A noite estava fria, também é certo, o que terá contribuído para as tremuras
daquele jovem ainda desabituado à humidade, à frialdade e ao fog londrinos, apesar de por ali viver havia
já uns anitos. Mas a alma habitua-se mais devagar que o corpo, é bem sabido, e o
fresco nevoeiro da cidade parecia que se colava a cada poro da sua pele morena à
medida que a carroça atravessava Lincoln's Gate rumo à velhinha ponte de Westminster,
levando os três homens consigo. Bem... os quatro. Para trás deixaram destrancado
o portão de ferro do cemitério, ao lado do qual alguém rabiscara a carvão, em
pleno muro, uma mensagem supostamente piedosa: o último que aqui entrou amava o próximo!
Mas a escuridão não lhes permitiu
ler o que quer que fosse. Claro que ao passarem à beira de um pub de Bow Street, pertinho já das docas,
sentiram a tentação de se aquecerem com bebidas quentes, lareiras acesas e coxas
femininas. Porém, seguiram caminho, cientes de que o bom trabalho quer-se bem feito
até ao fim e de que havia, mais adiante, quem os esperava com a justa paga do seu
labor nocturno. Por isso, tudo o que levaram desse pub foi o som distante de uma melodia arrastada..., trauteada por putéfias,
bêbados, trapeiros e guardas de cemitério dados a suborno.
O Teatro
Anatómico
Estendido na mesa de madeira do
auditório, alumiado pelos candeeiros a gás à sua volta, o corpo do ajudante de tanoeiro
exibia mais claramente as marcas da sua proletária miséria: a pele gasta que a morte
recente ainda mais macerava, as mãos nodosas e calejadas, os ossos que pareciam
querer romper a fina carnadura, os dentes gastos e cariados, o cabelo ralo e
sujo, que, aliás, fora rapado minutos antes, as unhas partidas e orladas a negro,
a baixa estatura (ou neste caso, o curto comprimento), tudo nele denunciava, enfim,
um ruim destino que, afinal, não terminara ainda. O doutor William White hesitou
na idade do objecto que defronte de si se exibia. Assim à primeira vista aquilo
parecia-lhe coisa para oscilar entre os vinte e tantos e os trinta e poucos, o que
para o efeito não era importante, sendo igualmente duvidoso que, em vida, o próprio
objecto soubesse com clareza o ano em que nascera. O médico ainda olhou uma vez
mais para aquele rosto marcado pelas bexigas, o que o levou a fazer umas breves
reflexões sobre as experiências do seu congénere Edward Jenner efectuadas uns anos
antes em vacas e em homens, desse modo constatando que o progresso da medicina se
faz, amiúde, por ínvios caminhos. Como, de resto, quase tudo nesta vida». In Sérgio
Luís Carvalho, O Exílio do Último Liberal, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN
978-898-845-221-4.
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