Matilde
«(…) Um dia Saul acercara-se de
Matilde e cozera-lhe noites a fio os pedaços desmembrados que sobravam dela.
Saul pegara neles docemente, embalara-os, falara-lhes como se faz às plantas, e
demorara-se na soleira da porta à espera de um murmúrio, uma chamada, algo que,
embora ténue, mas deixando indícios, algo que acabasse para sempre com aquela atmosfera
de morte anunciada, algo como um escaravelho em ouro ornando uma almofada, algo
como uma trotineta branca dançando acompanhada. Era dia de Reis. Os espanhóis
saíam à rua e mascaravam-se. Os bolos-rei saíam apressadamente das lojas em
direcção ao metro, os transeuntes agitavam-se nas encruzilhadas, e, no meio de
toda esta algazarra, Matilde passava, aparentemente submersa em cogitações
estouvadas. Anos e anos a fio de reclusão cerrada tinham-lhe atormentado as
articulações e a vista. Já nada poderia ser como antigamente fora, já nada lhe poderia
doravante parecer anódino e sem pressas, já nada teria o brilho embaciado das
cozinhas de província nas casas das velhas tias, com lareiras imensas. Nessa
época tudo se parecia diluir em estremecimentos inesperados que a sacudiam e lhe
faziam desejar homem com mais frequência.
Atapetava de jasmim as salas,
acobertava os medos, pisava descalça as lajes frias, e sentia por todo o corpo
uma vibração sem precedentes, e na pele encontrava uma textura cálida e macia. Sonhava
muitas vezes com esses tempos de menina, a bicicleta atravessando vilas, o
cheiro da terra inundando-lhe as narinas, as roupas leves que a aragem morna
atravessava com mestria e, depois, os braços estirados, o olhar espraiando-se,
o sussurro das folhas e a água dos múltiplos regatos penetrando-a de uma paz
desmedida e branda, um sol que queima, os caminhos que se conhecem, e os que se
desbravam. Queria ficar quieta ao pé da cascata e não sair dali nunca. Fechar
os olhos, estender os braços e embriagar-se de água, seu sussurro tranquilo,
suas quedas. Lembrou-se da mãe que não tinha. Apetecia-lhe o colo dela, o suave
roçagar dos seus vestidos, a silhueta esguia, os carinhos que nunca dera, sua
eterna melancolia. Esquecera-se de lhe dizer que a frieza dela a atingira.
A
Mãe
E vieram
as luzes e os dias. As gaivotas brincavam, as cotovias riam, e os garotos
inebriados chilreavam. Tudo se atapetara. E a mão da mãe abria-se, tocava-a, afagava-a.
Um ramo escondido, o cheiro que se exalava da terra húmida, a sombra das laranjeiras
em que apetecia ficar, horas a fio e de seguida. E como seria sentar-me ao coro
dela, enfiar a cabeça no seu ombro, sentir-lhe as mãos afagando-me os cabelos, respirar
o cheiro da sua pele que nunca aflorei, a textura do seu corpo que mal toquei, o
aconchego demorado com que nem me atrevia a sonhar, mesmo dormindo, e muito menos
acordada». In Rita Cerdeiros, As Hortênsias Brancas e as Bicicletas, Fenda
Edições, Lisboa, 1997, ISBN 972-918-449-6.
Cortesia
de FendaE/JDACT