Os
novos reis. O casamento de Janeiro
«(…) Isabel não era a única a
quem aquela presença incomodava. João Maltravers, genro de Mortimer, fora o
carcereiro do rei caído em desgraça. A sua súbita elevação ao cargo de senescal
denunciava com demasiada clareza que os seus serviços o haviam recompensado.
Oficialmente, Eduardo II morrera de morte natural, embora ninguém na corre
aceitasse essa fábula. O conde de Kent, meio-irmão do rei morto, inclinou-se
para o seu primo Pescoço Torcido e
sussurrou-lhe: Ao que parece, o regicídio passou a dar direito a um lugar na
família. Edmundo de Kent tremia de frio. A cerimónia parecia-lhe demasiado
longa, o ritual de Iorque demasiado complicado. Porque não teriam celebrado o
casamento na capela da Torre de Londres, ou de outro castelo real qualquer, em
vez de transformar a ocasião numa feira? A multidão incomodava-o. E ainda por
cima tinha de suportar a presença de Maltravers… Não seria indecente que o
homem que despachara o pai estivesse assim presente, e num lugar de honra, no
casamento do filho?
Pescoço
Torcido,
com a cabeça inclinada sobre o ombro direito, enfermidade a que devia o
cognome, murmurou: nada como o pecado para facilitar a entrada na nossa casa. O
nosso amigo é o primeiro a prová-lo... O nosso
amigo, era Mortimer, em relação ao qual os sentimentos dos ingleses se
haviam modificado profundamente desde que, há apenas um ano e meio,
desembarcara no reino à cabeça do exército da rainha e fora recebido como
libertador. No fim de contas, a mão que obedece não é mais feia que a cabeça
que comandar, pensava Pescoço Torcido.
E Mortimer é sem dúvida mais culpado, e com ele Isabel, que Maltravers. Mas todos
nós somos um pouco culpados. Todos contribuímos para destronar Eduardo II. Isto
não podia ter acabado de outra maneira.
Entretanto o arcebispo
apresentava ao jovem rei três moedas de ouro cunhadas numa face com as armas de
Inglaterra e de Hainaut e na outra com um ramalhete de rosas, as flores
emblemáticas da felicidade conjugal. Estas moedas eram os bens matrimoniais, símbolos
das dotações de rendas, terras e castelos que o marido constituía a favor da
mulher. As doações haviam sido claramente escritas e enumeradas, o que
tranquilizava um pouco João de Hainaut, tio da desposada, a quem ainda eram
devidas quinze mil libras da soldada dos seus cavaleiros na campanha da
Escócia. Prosternai-vos, senhora, aos pés de vosso marido, para receber as
moedas, disse o arcebispo à recém-casada. Todos os habitantes de Iorque
esperavam aquele momento, curiosos de saber se o ritual local seria
inteiramente respeitado, se o que era válido para qualquer súbdita o era também
para uma rainha.
Ninguém
previra que Filipa de Hainaut não só se ajoelharia, mas além disso, num impulso
de amor e de gratidão, abraçaria os joelhos daquele que a fizera rainha. A
flamenga roliça era capaz de improvisar sob o impulso do amor. Recebeu da turba
uma imensa ovação. Estou convencido de que serão felizes, afirmou Pescoço Torcido a João de Hainaut. O
povo vai amá-la, disse Isabel a Mortimer, que se aproximara dela. A rainha-mãe
sentiu-se ferida; a ovação não era para ela. Agora é Filipa que é
rainha, pensava. O meu tempo aqui terminou. Mas talvez agora me calhe a
França... Uma semana antes, um ginete com as vestes bordadas com a flor-de-lis
estivera em Iorque para a informar de que o seu último irmão, o rei Carlos IV
de França, estava a morrer». In Maurice Druon, 1966, Os Reis Inimigos, A
Flor-de-Lis e o Leão, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2007, ISBN
978-972-42-3926-2.
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