«Hoje o tempo não me enganou. Não
se conhece uma aragem na tarde. O ar queima, como se fosse um bafo quente de lume,
e não ar simples de respirar, como se a tarde não quisesse já morrer e começasse
aqui a hora do calor. Não há nuvens, há riscos brancos, muito finos, desfiados de
nuvens. E o céu, daqui, parece fresco, parece a água limpa de um açude. Penso: talvez
o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente não ande debaixo do céu
mas em cima dele; talvez a gente veja as coisas ao contrário e a terra seja como
um céu e quando a gente morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde
no céu. Um açude sem peixes, sem fundo, este céu. Nuvens, veios ténues. E o ar ir
arder por dentro, chamas quentes e abafadas na pele, invisíveis. Suspenso, como
um homem cansado, ar.
Há-de ser um instante em que não se
veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a
observar-nos. Chegará. Hei-de distingui-lo
no horizonte. Tão bem quanto sei isto agora, sabia-o ontem quando entrei na venda
do judas e pedi o primeiro copo e pedi o segundo e pedi o terceiro. Mais, sabia
que por toda a planície se calarão as cigarras e os grilos. De encontro ao céu,
as oliveiras e os sobreiros hão-de parar os ramos mais finos; num momento, hão-de
tornar-se pedra. José entrou na venda do judas e era noite. Trazia ainda no corpo
a roupa ruça do sol, na pele a luz ocre da terra, trazia no rosto um sorriso
reverente. Antecedeu-o o cajado, grosso na ponta, sujo. A cadela cansada, parida,
com a pele da barriga quase a arrojar no chão e as tetas grossas, seguiu-o. No balcão,
tirou o saco que trazia preso por um baraço ao ombro, encostou-o, encostou-se. Um
copo de tinto. Os poucos homens que o cumprimentaram arrastaram uma sílaba indecifrável,
a esmorecer.
Os outros, sem parar de falar ou beber
ou jogar às cartas, olharam a querer vê-lo. A cadela assentou as costelas no chão,
vergou a espinha num arco de nós que se lhe conheciam no pêlo e deitou as pálpebras
sobre os olhos castanhos e resignados. No momento em que José levantou o copo e
fez o vinho escorrer de uma vez para dentro de si, vistos do outro lado do largo,
vistos da noite e do silêncio, os homens na venda do judas eram o espaço aberto
de uma porta; eram um caminho fraco de luz que tentava avançar pelo terreiro deserto
e pela noite negra e negra; eram o lugar de palavras que não se distinguiam e que
tentavam entrar pelo terreiro deserto e pelo silêncio negro e negro.
E José
pousou o copo vazio no balcão, e junto à sua pele, sob a luz, sob as palavras,
instantâneo, materializou-se o sorriso vadio do demónio. Sorria. Era o único que
não trazia a pele escura do sol, trazia camisa e calças passadas e vincadas,
cabelo penteado entre a boina e as saliências dos cor… Era o único que sorria.
Dois copos de tinto, pediu sorrindo. José não precisou de o olhar. Em silêncio,
esperou os copos cheios até à gota que lhes faltou para que transbordassem. Enquanto
beberam, o demónio não largou José com o olhar e, mesmo bebendo, parecia sorrir
um sorriso miúdo que se dividia e multiplicava por mil sorrisos e mil sorrisos miúdos.
Os homens continuavam ou pareciam continuar as suas conversas infinitas, os seus
jogos infinitos de cartas, interrompendo apenas para espreitar as mudanças no
rosto de José e o sorriso escarninho do tentador ou pera cuspir restos húmidos de
cigarros enrolados. E o rosto de José transformava-se. Copos sucessivos
enchiam-no, aos poucos, de uma alegria sem razão, uma alegria de carnaval e ensaiados.
O demónio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está a tua mulher que não
a tenho visto? Por um momento, brilharam os olhos de José e parou de murmurar risos
para responder está onde deve estar, donde nunca saiu». In José Luís Peixoto, Nenhum
Olhar, 2000, Quetzal Editores, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-722-032-6.
Cortesia
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