sábado, 12 de setembro de 2015

Palavras e Coisas. António P Mesquita. «Dito isto, regressemos à questão inicial. ‘Que significa pensar a palavra sob a perspectiva do nome?’ ‘Que consequências advêm desta assimilação?’ … a principal consequência é a imediata filiação das palavras às coisas por elas nomeadas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Subsídios para a compreensão do Crátilo Platónico
«Quem atenta no Crátilo, diálogo vulgarmente assinalado à discussão da natureza da linguagem, defronta-se com uma questão inicial e incontornável: que sentido tem, ou pode ter, o facto de a linguagem ser aí examinada sob a perspectiva do nome! Ou doutro modo: que significado é de atribuir à circunstância de um diálogo acerca da justeza dos nomes, constituir o principal contributo platónico para a análise da linguagem?
Se quiséssemos circunscrever o problema de forma mais clara, formularíamos a seguinte pergunta: que consequências resultam para uma putativa teoria da linguagem do facto de se dar privilégio às palavras e, nelas, à função de nomear? É evidente que a legitimidade das questões produzidas decorre de se admitir como postulados dois pontos que estão muito longe de se encontrar totalmente estabelecidos. Ε por isso são elas interrogações preliminares, espontaneamente proferidas num primeiro gesto de espanto ou de suspeita, não ainda questões filosóficas, no sentido rigoroso da expressão. Com efeito, perguntar pela repercussão que o primado do nome tem sobre a linguagem no seu todo, implica pressupor, no caso do Crátilo, duas teses particularmente discutíveis: a primeira é a de que o texto visa ou procede, de facto, a um exame da linguagem; a segunda é a de que convém creditar incondicionalmente o subtítulo que a tradição fixou, confiando sem crítica que são os nomes e a sua justeza que nele se encontram verdadeiramente em discussão.
Não recusamos taxativamente nenhuma destas teses; não é aliás nosso intento comentá-las detalhadamente por agora. Basta-nos vincar, desde já, o carácter problemático de que elas se revestem, sugerindo, sem mais explicações, que talvez não seja exclusiva nem principalmente a linguagem o que está em causa no Crátilo e que à tese da exactidão das palavras como objecto temático do diálogo falta alguma precisão e algum esclarecimento suplementar. Deve notar-se, entretanto, que, se à primeira vista o duplo reparo aqui apontado condiciona a validade das questões apresentadas, nem por isso, todavia, lhes retira necessariamente pertinência. Desde logo porque, no plano inicial em que nos encontramos, essa pertinência não necessita de ser provada a priori, sendo, ao contrário, a fecundidade dos resultados obtidos que a poderá finalmente comprovar ou infirmar. No presente estádio, o simples surgimento da questão é suficiente justificação para si mesma; se colocamos a pergunta é, portanto, muito mais porque o próprio texto primitivamente no-la colocou do que porque com ela almejemos a uma resposta precisa: se a colocamos é, pois, tão-só para ver até onde ela nos conduz.
Mas, para além disto, quaisquer que sejam as dúvidas que se possam alimentar sobre o sentido filosófico do Crátilo, dois factos existem que as tomam, neste ponto, completamente despiciendas. O primeiro é o do Crátilo ser, quer queiramos ou não ver nele uma obra sobre a linguagem, o único texto de entre o corpus platónico que versa objectiva e sistematicamente temas do âmbito da filosofia da linguagem; nesta medida, a análise do que aí pertence a este domínio pode ser sempre legitimamente feita, do mesmo modo que os resultados adquiridos nessa análise, por limitados ou parciais que se mostrem no todo do pensamento platónico, devem revelar fatalmente uma perspectiva sobre a linguagem, a saber, a perspectiva que o Crátilo configura.
Por outro lado, ainda que tal análise fosse forçada ou arbitrária, e vimo-lo que o não é, a simples circunstância do texto nos fornecer uma imagem da palavra em que ela surge pensada sob o paradigma do nome é já por si mais do que suficiente para nos fazer pensar também a nós. Eis, portanto, o que legitima a interrogação acerca das consequências filosóficas não já apenas para a linguagem e não ainda propriamente para a filosofia, mas para o sentido mesmo do texto, dessa identificação entre palavra e nome. Dito isto, regressemos à questão inicial. Que significa pensar a palavra sob a perspectiva do nome? Que consequências advêm desta assimilação?
De um modo geral, e sem pensar especificamente no texto em causa, parece claro que a principal consequência é a imediata filiação das palavras às coisas por elas nomeadas, isto é, a preponderância da denotação sobre a conotação ou do referente sobre o sentido da palavra; se as palavras são nomes, o seu valor está no que é nomeado: da palavra está, assim, fora dela mesma. A linguagem não é então autónoma relativamente à realidade que nomeia, mas, ao contrário, cumpre-se apenas na relação que se estabelece no processo da nomeação. A heteronomia da palavra é, deste modo, a primeira consequência da sua assimilação ao nome». In António Pedro Mesquita, Palavras e Coisas, Subsídios para a compreensão do Crátilo Platónico, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT