quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A Trança de Inês. Rosa Lobato Faria. «Um dia que parecia igual a todos os outros, em que me arrependi pela milionésima vez de ter feito a vontade ao meu pai e ter ido trabalhar para a firma para compensá-lo um pouco do muito que o contrariei por ter estudado pintura…»

jdact e wikipedia

«Um não sei quê que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In Luís de Camões

«(…) Ao princípio achávamos que era apenas uma coincidência, Pedro e Inês e os seus amores contrariados, depois, com o decurso dos acontecimentos e o progresso da minha loucura comecei a pensar que eu devia ser a reencarnação de Pedro I, o Cru, mas agora tenho a certeza de que sou o próprio rei, o que não descansa, o que não dorme, o que arrasta a amada pelas noites fantasmagóricas do seu reino, o que manda acender fogueiras para aquecer-lhe o corpo gelado, pela morte, segredam uns, pela paixão perdida, afirmam outros. Não me juraste tu, Inês, que nada conseguiria separar-nos? Como puderam os esbirros de meu pai pensar que te matavam, que matavam este amor sem fronteiras, sem tempo, sem espaço, materializado de onde em onde na história, na eternidade, no coração dos homens? Somos, para sempre, da vida e da morte, para sempre, para sempre, para sempre, somos senhores do tempo, escravos do tempo, a droga que me enfiaram nas veias envolve-me agora nos seus tentáculos quentes e sábios, leva-me pelas ruas da eternidade, por onde é dantes, é depois, é agora, passado e futuro onde perenemente te encontro, te amo, te venero e te conduzo à morte e enlouqueço.
Uma manhã igual a todas as outras. O café com leite pouco quente, a taça da compota besuntada do lado de fora, a manteiga dura, impossível de espalhar no pão fresco. Não quero começar o dia a ouvir falar do meu mau feitio por isso finjo que como pouco só porque tenho pressa. Não me apetece ver a Constança com um roupão que já fez a sua época, dei-lhe um novo nos anos dela mas insiste em vestir sempre o mesmo, fica desmazelada, fica feia, fica mais magra, vem atrás de mim a pisar as manchas de sol de Inverno que as janelas desenham no encerado da casa de jantar, depois no da sala, que atravesso para apanhar as chaves que costumo largar no prato azul de porcelana antiga junto à porta da entrada. São os anos da minha tia, e sabes que ela não gosta de servir o jantar depois das nove. Se te atrasares não posso esperar por ti, estou farta de fazer tristes figuras por tua causa. Hás-de querer tomar banho, hás-de querer mudar de fato e podias mandar a tua secretária telefonar à florista, porque o presente que eu lhe comprei é um bocado simplório. Pedro, estás a ouvir.
Não, não estou a ouvir. Agora não estou com cabeça para te aturar. Liga-me mais tarde, pode ser que eu perceba qual é a tua invenção do dia para me chateares. Anos da tua tia Mila, parece-me bem que não. Que não quê, Pedro, que não quê, mas eu já fechei a porta, já me meti no carro, já estou a sair o portão e a pensar que daqui até Lisboa vou demorar horas, ou saio às sete da manhã de Cascais ou apanho uma fila interminável de pára-arranca. Tenho que pensar seriamente em arranjar um apartamento pequeno em Lisboa, perto do escritório, para evitar este calvário do trânsito, estas horas perdidas a ver crescer a manhã, agarrado ao volante e ao telemóvel, igual a todos os outros habitantes do formigueiro, atrás, à frente e aos lados. Dona Zilda, ligue à minha mulher, por favor, acho que ela precisa de qualquer coisa da florista, diga ao doutor Almeida que não marque a reunião com a agência sem eu chegar, e se o meu pai, ai o meu pai não está, então okay, eu depois falo com ele.
Um dia que parecia igual a todos os outros, em que me arrependi pela milionésima vez de ter feito a vontade ao meu pai e ter ido trabalhar para a firma para compensá-lo um pouco do muito que o contrariei por ter estudado pintura em vez de economia ou direito, Belas-Artes em vez de um curso sério, desses que servem para administrar empresas e aumentar fortunas. Cheguei irritado, em vez de dizer bom dia, pedi um café sem me deter, como os magnatas dos filmes americanos. A dona Zilda e a Joana do computador ainda se ergueram das cadeiras com recados, assuntos pendentes, mas já tinha fechado a porta fazendo jus à minha reputação de intratável, bruto e mal-agradecido. A dona Zilda entrou com pezinhos de lã, senhor doutor o cafezinho, se o senhor doutor me desse licença precisava que me ouvisse um instante, um minutinho só». In Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês, Círculo de Leitores, cortesia de ASA Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.

Cortesia CL/JDACT