De acordo com o original
«(…) ...Nada, com
effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do lavrador, e melhor o
indemnizasse d’aquellas fainas laboriosas que lhe consummiam os dias,
imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes causticantes e chuvas torrenciaes. Por
isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das partidas e diabruras do Sultão! Ás
vezes, o pequeno jumento, ferido não sei por que vespa invisivel, despedia sem
mais nem menos n’uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras,
agitando a cauda, por aquella rua fóra. Rompia de toda a banda n’um alarido o rancho
pacifico das galinhas, que já no ar andavam como doidas, cacarejando, como se
um pé de vento as levasse. Accudia gente aos postigos, ás portas, ás janellas,
a ver a polvorosa; e subito se inundava a rua de rapazes, rotos, descalços,
alguns quasi nús, correndo atraz do burro, gritando-lhe, acenando-lhe,
espantando-o, como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a todos,
varrendo a própria rua... E um lá ia a terra, e sobre esse passavam os outros,
e sobre todos voava o Sultão,
apupado, perseguido, acclamado, na malta espavorida dos inimigos...
Sultão!, eh lá! Sultão! Subito, como se lhe estalasse a corda, o
animal estacava, e logo de volta d’elle postava-se a rapaziada, mas n’um alor
de nova fuga, não lhe desse na bôlha atacal-os... E abriam alas de repente,
quando elle, tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se
não deixar atropellar investia com o Sultão
de braços abertos, o que era, já se vê, um modo de o abraçar, fingindo medo. E
vinham as gargalhadas estridulas, os rogos para que pozesse treguas, as
supplicas para que se accommodasse, recuando o lavrador até ao ultimo degrau da
escada, onde se deixava cair, derrotado! P’ra lá, Sultão!, p’ra lá!, fazia então o Thomé, oppondo-lhe os pés, desviando-o,
apoiando-se nos cotovelos, muito inclinado para traz, a rir como um perdido.
Então o pequeno jumento
estacava, offegante. Mas prestes rompia a girandola dos coices, em que era
eximio, sacudindo muito as patas, cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo
que o Thomé solicito dava aos rapazes o aviso de se arredarem, porque era
doido, aquelle demonio!... Outras vezes, parece que variando de tactica,
entrava de seguir muito cauteloso, n’um ronceirismo perfido, como um borrego ou
como um cão, certa mulher que passava. Até que lá ia uma focinhada, e logo após
os saltos do costume, respondendo com uma ameaça de pinotes á surpresa da viandante.
Dê, tia Luiza!, bata n’esse maroto!, fazia de lá o Thomé, com ares de zangado.
E depois, batendo o pé, pedindo que lhe dessem uma verdasca: Sultão!, venha já p’r’aqui!, intimava.
E se encontrava um cão?
Se encontrava um cão, ia logo direito a elle, muito de vagar, cauda caida,
orelhas murchas, n’um cumprimento humilde de focinho. O cão regougava,
desconfiado, entreabrindo a dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o Sultão signaes de medo, e humilde proseguia
para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava um passo,
espertando da sua indolencia passiva; e de espinha arqueada ganhava o terreno
perdido, fitando impassivel o cão... O bruto formava então o salto, regougando
forte, o pêllo eriçado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de um
pulo o Sultão, evitando-o, até que por
compaixão lhe dava um pequenino coice, mais
feitio que outra coisa, pondo em fuga o mastim, corrido, ganindo, vencido: Eh!,
valente!, gritava-lhe então o Thomé.
E com duas palmadas na
anca, espantava-o emfim para o cortelho, dizendo ao correr a caravelha: não ha
dinheiro que te pague, assim me Deus salve! E comido o caldo verde da ceia,
nunca o Thomé da Eira ia para a cama sem primeiro descer a vêr o Sultão, de candeia na mão esquerda, e na
direita, contra o sovaco, a bella quarta do grão, acogulada. Muitas vezes
acontecia esquecer-se o Thomé a vel-o comer, de candeia attenta, encostado á
mangedoira, sorrindo: e, de cima, a Josefa tinha de intervir então,
gritando-lhe pelas frinchas do sobrado: Thomé, vê se te vens deitar, meu
pasmado!, olha que são horas». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e
Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e
Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa,
Livraria de António Pereira, 1894.
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