domingo, 27 de setembro de 2015

O Juramento da Rainha. Isabel, a Católica. CW Gortner. «Não soprava vento e o ar estava carregado da fragrância da resina, com um toque subtil de neve derretida à mistura, um odor que sempre associei à chegada da Primavera. Não é espectacular?»

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A Infanta de Arévalo
«(…) Devíamos ter dito a verdade a doña Clara, comentei, olhando para as minhas mãos. Estava outra vez a apertar muito as rédeas e, por isso, forcei-me a descontrair. Não me parece que ela vá achar apropriado termos saído por aí a deambular a cavalo. Beatriz apontou para adiante. E que interesse tem o que é apropriado? Olhai só à vossa volta! Relutante, assim fiz. O sol ia mergulhando no horizonte, enchendo o céu esbranquiçado de um vibrante brilho cor de açafrão. À nossa esquerda, Arévalo erguia-se sobre uma colina baixa, uma cidadela de tom pardo com seis torres e uma torre de menagem com ameias, adjacente a uma rústica cidade mercantil com o mesmo nome. Do lado direito tínhamos a estrada principal que ia dar a Madrid, e a toda a nossa volta, estendendo-se até perder de vista, estava Castela, um  território sem fim, salpicado de campos de cevada e de trigo, de hortas e de aglomerados de pinheiros de tronco torcido. Não soprava vento e o ar estava carregado da fragrância da resina, com um toque subtil de neve derretida à mistura, um odor que sempre associei à chegada da Primavera.
Não é espectacular?, sussurrou Beatriz, de olhos a brilhar. Assenti, admirando aqueles campos que eram o meu lar praticamente desde que me lembrava. Claro que já os vira muitas vezes, tanto da torre de menagem de Arévalo como nas nossas idas anuais com doña Clara até à povoação vizinha de Medina del Campo, onde tinha rugar a maior feira de animais de Castela. Mas, por alguma razão que não teria sabido explicar, naquele dia pareceram-me diferentes, como quando nos damos subitamente conta de que o tempo transformou um quadro que já vimos muitas vezes, escurecendo as cores, dando-lhes um novo brilho e aumentando o contraste entre claros e escuros. A minha narureza prática assegurou-me que tal impressão se devia a estar a ver a paisagem de um ponto mais alto, o dorso do Canela, em vez do da mula que costumava montar. Ainda assim, vieram-me lágrimas aos olhos e, sem aviso, recordei subitamente uma imponente sala cheia de pessoas vestidas de veludo e de seda. A imagem esfumou-se logo de seguida, apenas um fantasma do passado, e, quando Alfonso, que seguia lá mais adiante com Chacón, me acenou, esqueci de imediato que estaya sentada sobre um animal desconhecido e potencialmente traiçoeiro, e dei-lhe com os calcanhares nos flancos.
O Canela lançou-se em diante, obrigando-me a apoiar-me na curva do seu pescoço. Instintivamente, agarrei-me à sua crina, erguendo-me da sela e retesando as coxas. O Canela respondeu com um resfolegar satisfeito. Acelerou ainda mais, passando a galopar por Alfonso e levantando atrás de si um remoinho de poeira ocre. Díos Mío! ouvi Alfonso exclamar quando passei por ele a toda a velocidade. Pelo canto do olho vi Beatriz a seguir-me a toda a brida, gritando ao meu irmão e a um atónito Chacón: com que então, anos de experiência? Explodi em gargalhadas.
Era maravilhoso, tal como eu imaginava que voar devia ser, deixar para trás as preocupações das lições e do estudo, as geladas lajes do castelo, as cestas sempre cheias de roupa para cerzir e o constante resmungar preocupado por causa do dinheiro e da saúde frágil da minha mãe; ser livre, poder gozar a sensação do cavalo em movimento por baixo de mim e admirar a paisagem de Castela. Quando parei, ofegante, num cume de onde se avistava a planície, o capuz de montar caíra-me para as costas e os meus cabelos ruivo-claros estavam a soltar-se das tranças. Descendo do Canela, afaguei-lhe o pescoço suado. Ele esfregou o focinho na palma da minha mão e depois pôs-se a mastigar os espinheiros secos que espreitavam por entre as rochas. Sentei-me num amontoado de pedras ali ao pé e fiquei a ver Beatriz subir velozmente ao meu encontro. Quando ela parou, corada do esforço, comentei: afinal tínheis razão. De facto, precisávamos de exercício. Exercício?, arquejou ela, descendo do cavalo. Tendes noção de que acabámos de deixar Sua Alteza e Chacón para trás, no meio de uma nuvem de poeira? Sorri».
In CW Gortner, O Juramento da Rainha, Isabel, a Católica, 2012, tradução de Miguel Romeira, Topseller, 20/20 Editores, 2013, ISBN 978-9879-862-627-1.

Cortesia de Topseller/JDACT