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Procurei envenenar as suas ilusões. Disse-lhe que acabava de comprovar que os Bolivianos
eram muito antipáticos e que Pedro Camacho iria dar-se pessimamente com todas as
pessoas da Rádio Central, A sua pronúncia cairia como pedradas nos ouvintes e, devido
à sua ignorância em relação ao Peru, meteria o pé na argola a cada instante. Mas
ele sorria, intocado pelas minhas profecias derrotistas. Embora nunca tivesse aqui
estado, Pedro Camacho falara-lhe da alma limenha como um Bajopontino e a sua pronúncia
era soberba, sem esses nem erres acentuados, categoria de veludo. O pobre forasteiro
vai ser esmagado entre Luciano Pando e os outros actores, sonhou Javier. Ou será
violado pela bela Josefina Sánchez.
Estávamos
no sótão e conversávamos enquanto eu passava à máquina, alterando adjectivos e advérbios,
notícias de El Comercio e de La Prensa
para o Pan-Anericano do meio-dia. Javier era o meu melhor amigo e víamo-nos diariamente,
ainda que só por momentos, para constatar que existíamos. Era um ser de entusiasmos
cambiantes e contraditórios, mas sempre sinceros. Fora a estrela do Departamento
de Literatura da Católica, onde antes não se vira um aluno mais aplicado, nem mais
lúcido leitor de poesia, nem mais perspicaz comentador de textos difíceis.
Todos tinham como certo que se formaria com uma tese brilhante, seria um
catedrático brilhante e um poeta ou um crítico igualmente brilhante. Mas um
belo dia, sem explicações. decepcionou toda a gente, abandonando a tese em que trabalhava,
renunciando à Literatura e à Universidade Católica e inscrevendo-se em San Marcos
como aluno de Economia. Quando alguém lhe perguntava a que se devia essa deserção,
ele confessava (ou parodiava) que a tese em que estivera a trabalhar lhe tinha
aberto os olhos. Iria ter o título As Parémias
em Ricardo Palma. Tivera de ler as Tradiciones
Peruanas com lupa, à cata de provérbios, e como era consciencioso e rigoroso,
tinha conseguido chegar a um caixote de fichas eruditas.
Depois,
uma manhã, queimou o caixote com as fichas num descampado, ele e eu dançámos
uma dança apache em volta das chamas filológicas, e decidiu que odiava a literatura
e que até a economia era preferível. Javier fazia o estágio no Banco Central de
Reserva e encontrava sempre pretexto para todas as manhãs dar um salto até à Rádio
Pan-Americana. Do seu pesadelo paremiológico ficara-lhe o hábito de infligir-me
provérbios sem tom nem som. Fiquei muito surpreendido por a tia Júlia, apesar de
ser boliviana e viver em La Paz, nunca ter ouvido uma radionovela, ou posto os
pés num teatro desde que interpretou a Dança
das Horas, no papel de Crepúsculo, no ano em que terminou o colégio de freiras
irlandeses (não te atrevas e perguntar-me há quantos anos foi isso, Marito). Caminhávamos
da casa do tio Lucho, no fim da Avenida Armendáriz, para o Cinema Barranco.
Tinha
sido ela mesmo a impor-me o convite, nesse meio-dia, da forma mais manhosa. Era
a quinta-feira seguinte à sua chegada, e, embora não me agradasse a perspectiva
de ser novamente vítima das piadas bolivianas, não quis faltar to almoço
semanal. Tinha a esperança de não a encontrar, porque na véspera, as quartas-feiras
à noite eram dias de visita à tia Gaby, ouvira a tia Hortensia comunicar num
tom de quem está no segredo dos deuses: na sua primeira semana em Lima saiu quatro
luzes e com quatro galãs diferentes, um deles casado. A divorciada tem pinta!
Quando
cheguei a casa do tio Lucho, a seguir ao Pan-Americano do meio-dia, encontrei-a
precisamente com um dos seus galãs, senti o doce prazer da vingança ao entrar na
sala e descobrir a seu lado, olhando-a com olhos de conquistador, espaventoso de
ridículo no seu fato de outras épocas, com a sua graveta de borboletas e de cravo
ao peito, o tio Pancracio, um primo-irmão da minha avó. Enviuvara há séculos,
caminhava com as pernas abertas, marcando as dez para as duas, e na família comentava-se
maliciosamente as suas visitas porque não se importava de beliscar as criadas à
vista de todos. Pintava o cabelo, usava relógio de bolso com corrente prateada e
era visto diariamente nas esquinas do gradeamento da União, às seis da tarde, atirando
piropos às operárias». In Mario Vargas Llosa, A tia Júlia e o
Escrevedor, 1977, tradução de Cristina Rodriguez, Publicações dom Quixote, 1988,
2008, ISBN 978-846-123-866-8.
Cortesia
PdQuixote/JDACT