O
Rei está morto. 1189. Castelo de Chinon
«A
chuva diminuíra até se tomar uma chuvinha fina. O manto de Elise já estava
encharcado, mas era o melhor que encontrara para a peregrinação dessa noite. O
capuz cobria parte do seu rosto e toda a extensão de seus cabelos ruivos e
dourados, os quais teriam chamado a atenção de certos homens, naqueles tempos. Aqueles
tempos..., os pingos muito finos que caíam contra a sela do cavalo pareciam
reverberar em seu coração. O rei morrera. Henrique II, pela graça de Deus, rei
da Inglaterra, duque da Normandia e conde d’Anjou, estava morto. E por tudo que
ele fora, belo, corajoso, triunfante, ou cruel, idoso, derrotado, Elise o tinha
amado com uma devoção singela e cega, que pouquíssimas outras mulheres poderiam
ter sentido. Ela o compreendera como poucas; conhecera-o e pensara muito em
tudo que poderia fazer por ele. Henrique, neto de outro Henrique, que fora o
filho mais novo de Guilherme, o Conquistador, já nascera herdeiro de Anjou e da
Normandia. Seu pai lutara para garantir-lhe a Normandia; sua mãe lutara para
dar-lhe a Inglaterra. Ela não conseguira e Henrique travara muitas batalhas
longas, contra Stephen da Inglaterra para retomar sua herança após a morte
deste. Através de Eleanor da Aquitânia, obtivera as vastas terras ao sul da
França. Não fora apenas rei da Inglaterra; fora um dos maiores reis europeus.
Para
a Normandia, a Aquitânia, Anjou e Maine, ele mantivera lealdade ao rei da
França; mas Henrique fora o governante, sem dúvida. Até que o jovem rei
francês, Philip Augustus, e os próprios filhos de Henrique, lutando sob a
rígida vigilância que mantinha sobre eles, juntaram-se para confrontá-lo. Henrique...,
famoso por seu temperamento plantageneta, por sua longa discussão com Thomas
Becket e por ter sido a causa do assassinato deste. Um verdadeiro azougue;
um homem de energia e força, sempre em movimento, sempre pronto para ir contra
qualquer possibilidade. Mas, desta vez, ele perdera. E a morte vencera. Elise
cerrou os olhos, numa prece ardente. Como o amara! Pedia a Deus que a história
guardasse para as gerações futuras tudo de bom que ele fizera. Mesmo na disputa
com Becket, tomara-se algo pessoal. Sim, mas Henrique lutara para dar justiça
ao povo. Para tomar o assassinato um crime, fosse ele perpetrado por um clérigo
ou um leigo. Henrique fora um homem sempre ao lado da lei! Criara cortes, um
sistema judiciário que viveria muito além dele próprio. Suprimira o julgamento
por provas, trouxera testemunhas para dentro das cortes. Fora um grande amigo
do povo. E agora estava morto. Lutara durante meses contra o jovem rei francês
e contra Ricardo, seu próprio herdeiro. Batalha após batalha, tomando cidade
após cidade. Ricardo e Philip, por fim, o tinham forçado a assinar um documento
com exigências humilhantes, e ele morrera, um tão grande rei que fora,
transformado num homem alquebrado.
Elise
viera para chorar sua morte porque, para ela, ele fora tudo. Amara-o muito,
profundamente. Viajava com apenas uma companhia, Isabel, uma jovem criada a seu
serviço. Era muito perigoso que assim fizesse, pois mesmo tendo deixado todas
as roupas elegantes para trás, assaltantes e criminosos de toda espécie
poderiam cruzar seu caminho em busca de presa fácil. Mas Elise levava consigo a
sua adaga e estava entristecida demais para dar crédito ao seu próprio risco.
E, conforme seguia pela estrada lamacenta, sob a chuvionha impiedosa, mais
deprimida ficava. Eram cinco milhas de seu ducado, num vale fértil e próspero
em Montoui, cujas terras estavam sob o domínio de Philip da França, até Chinon,
para onde se dirigia. As estradas estavam relativamente boas; eram estradas
romanas que se mantinham em bom estado devido à passagem constante de homens da
igreja, emissários e peregrinos, além, claro, do movimento frequente de
Henrique por seus domínios. Mas boas estradas podiam também significar um
perigo maior e Elise passara boa parte da viagem seguindo por caminhos vicinais
que estavam em pior estado. Tinha sido uma jornada cansativa e tinham avançado
boa parte do caminho cavalgando, mas, agora, a velocidade era menor por causa
da chuva.
Uma
coruja revoou, saindo de uma árvore próxima, e o seu animal assustou-se. É o
castelo, senhora, disse Isabel, com certo nervosismo. Já estamos chegando. A
moça estava muito cansada e também assustada. Elise sabia que não deveria tê-la
trazido consigo. Isabel era tranquila, não gostava de aventuras. Mas, como a
criada era jovem, achou que ela não se cansaria tanto assim. Fosse como fosse,
era tarde demais para qualquer mudança agora. Devia ter vindo sozinha, mas
seria impossível deixar Montoui sem companhia, pois seus criados jamais
permitiriam que fizesse tal jornada. A lua estava pálida no céu nublado, mas as
muralhas do castelo já eram visíveis a pouca distância. Chinon era um dos
castelos de Henrique, para onde viera depois de seu fatídico encontro com
Philip e Ricardo. Era um castelo enorme, com imensas muralhas de pedra,
construído para ser uma fortaleza. Havia certa luminosidade vindo de algumas
ameias. Mas o tempo ruim impedia que se pudesse ver direito. E, assim, o
castelo se tomava uma mancha mais escura no negrume da noite. Venha, Elise
chamou sua criada. Estou vendo uma ponte ali adiante. Senhora, tem certeza de
que esta aventura pode dar certo? O castelo deve estar cheio de cavaleiros do
rei. Sim, Isabel. Esta jornada foi necessária. Elise falava com autoridade. Não
estava disposta a aturar críticas de uma serviçal. Mas assim que disse tais
palavras, arrependeu-se. Afinal, em sua casa, os criados eram ensinados a ler e
escrever; e a pensar e argumentar também». In Shannon Drake, O Cavaleiro Negro,
Clássicos históricos, 262, Nova Cultural, São Paulo, 2006.
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