Ambições de mãe: dona Beatriz e os
filhos
«(…) Para mim é clara, e explico-a
por mero exercício de honestidade intelectual: por toda a Europa assistimos à criação
de um Estado territorial soberano, dentro do qual não há lugar para que várias
famílias compitam com a do rei. O princípio da primogenitura, embora já existisse
no que toca à sucessão do trono, não era acompanhado por um poder senhorial, territorial
e económico condizente, o que levava a contínuas lutas pelo poder no seio da mesma
família, ou entre famílias rivais, por vezes aparentadas entre si. A turbulência
que se verificava nesta era da conspiração,
como lhe chamou Lauro Martines, tinha a ver, ou com a evolução das repúblicas para
monarquias, como é o caso de Florença, ou com monarquias onde a distância entre
o rei e a aristocracia não era ainda suficiente para o impor como chefe
incontestado.
Dona Leonor e os irmãos
Leonor foi, assim, uma entre
muitos irmãos. Podemos enumerá-los, embora não saibamos se por ordem de idades,
porque desconhecemos o ano do nascimento de todos eles, com excepção de dona Leonor
e Manuel: Isabel, Catarina, João, Diogo, Duarte, Dinis, Simão e, finalmente, o irmão
mais novo, Manuel. É Damião de Góis quem fornece a lista na sua Crónica de D. Manuel, mas na sua Crónica do Príncipe D. João omite o nome
de Catarina, que deve ter sido justamente um destes filhos que desaparecem das fontes
em razão da sua curta existência. Mas, se lermos a crónica de Afonso V de Rui Pina,
omite-se também Dinis pelas mesmas razóes. De resto, deparei-me com as mesmas dificuldades
de outros historiadores ao tentar fixar as datas de nascimento de todos estes irmãos,
bem como do ano da morte relativamente aos que morreram.
Em criança, dona Leonor terá tido
oportunidade de conviver com alguns desses irmãos falecidos. Nem todos (ao contrário
de Catarina, Simão e Dinis) morreram na primeira infância: João, o mais velho,
viveu pelo menos até aos 10 anos, bem como Duarte. O que não quer dizer que vivessem
juntos: nestas sociedades era hábito confiar as crianças a outras pessoas para as
criarem, e sabemos que Duarte foi criado na casa do príncipe, ou seja, do futuro
João II. Diz a crónica: e o terceiro filho
houve nome Duarte, que o príncipe recolheu para si, e criando-o em sua casa com
muita honra e grande amor como próprio filho, faleceu em moço. Os
historiadores têm chamado atenção para este sistema de circulação de crianças,
em que existem várias modalidades através das quais estas abandonam a família
biológica muito antes da idade adulta ou até da adolescência. Os pais confiavam-nas
a terceiros, embora em situações muito diversificadas: entregando-as a uma ama
que as amamentasse; confiando os rapazes a um aio que acompanhava o seu crescimento
e educação; dando-as a criar a nobres de estirpe mais elevada, entre as quais o
rei. Nesse caso, tratamos dos fidalgos de
criação do rei, ou criados, como são
muitas vezes designados nas crónicas. Havia ainda as crianças abandonadas ou expostas,
os filhos confiados a mestres de oficinas para aprenderem um ofício, as crianças
que eram postas a trabalhar como servidores domésticos, etc. Mesmo a emigração ou
a incorporação em forças militares se fazia muito cedo, cerca dos 12 anos. Embora
não abrangesse a totalidade das famílias, muitas conservavam os filhos durante todo
o processo de crescimento, a circulação de crianças atravessava todas as condições
sociais e económicas, generalizando-se a toda a sociedade». In
Isabel Guimarães Sá, De Princesa a Rainha-velha, Leonor de Lencastre, colecção
Rainhas de Portugal, Círculo de Leitores, 2011, ISBN 978-972-424-709-0.
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