«Quarta-feira de cinzas do ano do
Senhor de 1205. Rajadas de vento
gélido fustigavam a Abadia de San Michele della Chiusa, insinuando, entre as suas
paredes, um cheiro a resina e folhas secas, e anunciando a chegada de uma
tempestade. As cerimónias das vésperas ainda não tinham terminado quando o padre
Vivien de Narbonne decidiu sair do mosteiro. Irritado com as efusões de incenso
e o crepitar das velas, atravessou a porta da entrada e deu uns passos pelo pátio
coberto de neve. Diante dos seus olhos, o crepúsculo exalava os últimos suspiros
de luz diurna. Uma inesperada rajada de vento atingiu-o, provocando-lhe um arrepio.
O monge aconchegou-se na túnica e franziu a testa como se tivesse sido alvo de
uma injúria. A sensação de mal-estar que o acompanhava desde que se levantara de
manhã não dava sinais de desalento; pelo contrário, agravara-se com o decorrer
do dia. Decidido a mitigar a inquietação com um pouco de repouso, desviou caminho
na direcção do claustro, atravessou a colunata e penetrou no imponente dormitório,
onde a luz amarelada dos archotes e uma sucessão de angústias vãs, ou seja, pouco
sufocantes, o acolheram.
Indiferente àquela mordaça
claustrofóbica, Vivien percorreu um labirinto de corredores e de escadas esfregando
as mãos por causa do frio. Precisava de se deitar, de não pensar em nada, mas quando
se abeirou da cela, algo de surpreendente o esperava: um punhal cruciforme fora
cravado na porta. Do guarda-mato de bronze pendia um bilhete enrolado. O monge fixou-o
por um instante, invadido por um terrível pressentimento até que, retomada a coragem,
se decidiu a lê-lo. A mensagem era breve e assustadora. Vivien de Narbonne, acusado de necromancia. Sentença emitida pelo Tribunal
Secreto da SantaVehme. Ordem dos franco-juízes.
Vivien caiu de joelhos,
aterrorizado. A Santa Vehme? Os Videntes? Como teriam conseguido localizá-1o naquele
refúgio afundado no meio dos Alpes? Depois de tantos anos de fuga, pensava estar
seguro, já ter conseguido apagar as próprias pegadas. Mas não. Tinham-no encontrado!
Não havia tempo para o desespero. Precisava de fugir mais uma vez. Ergueu-se
apoiando-se nas pernas trémulas, entorpecido pelo medo. Abriu a porta da cela
de par em par, recolheu alguns objectos que estavam mais à mão e dirigiu-se
rapidamente para os estábulos, coberto com uma pesada capa. De súbito, os corredores
de pedra pareceram estreitar-se, e de novo a claustrofobia apoderou-se dele. Ao
sair do dormitório, deu-se conta de que arrefecera. O vento uivava, flagelando as
nuvens e as copas esqueléticas das árvores. Os irmãos continuavam dentro do
mosteiro, envoltos pela tepidez sagrada da nave central.
Vivien aconchegou a capa e entrou
nas estrebarias. Selou um cavalo, montou-o e percorreu a trote o burgo de San Michele.
Os grossos flocos de neve que começaram a cair-lhe sobre as costas ensoparam o
hábito de lã. No entanto, não era este frio que o fazia tremer, mas o dos pensamentos.
Esperava uma emboscada a todo o momento. Quando chegou perto da passagem entre as
muralhas, um monge embiocado no seu hábito veio ao seu encontro. Era o padre Geraldo
de Pinerolo, o despenseiro. Tirou o capuz, mostrando uma longa barba preta-azeviche
e um olhar atónito. Aonde ides, irmão?, perguntou-lhe. Entrai antes que a tempestade
se desencadeie. Vivien nem respondeu e continuou em direcção à saída, rezando para
ainda conseguir chegar a tempo... Mas perto da passagem um carro puxado por dois
cavalos negros como a noite, com um único homem sentado no lugar do cocheiro, um
emissário de morte, aguardava-o.
O
fugitivo ultrapassou-o fingindo indiferença. Mantém o rosto escondido pelo
capuz e está atento para não cruzar o olhar com o do cocheiro. Geraldo, esse, aproximou-se
do desconhecido e observou-o: era um tipo imponente, com um grande chapéu e um manto
negro. Não tinha nada de especial, à primeira vista, mas, quando o olhou de frente,
não conseguiu mais tirar os olhos dele: o rosto daquele homem tinha a cor do sangue
e encrespava-se numa expressão de escárnio infernal. O diabo!, exclamou o
despenseiro, recuando. Entretanto, Vivien esporeara o cavalo e lançara-se a galope
ao longo do declive, na direcção do Val di Susa. Quisera fugir o mais depressa possível,
mas a neve, misturada com a lama, tornava o piso impraticável e constrangia-o a
prosseguir com cautela. O sombrio cocheiro reconhecera o fugitivo, picara os
cavalos e lançara o carro na sua perseguição. Vivien de Narbonne, parai!, gritou,
enraivecido. Não conseguireis esconder-vos eternamente da Santa Vehme!» In Marcello
Simoni, O Mercador de Livros Malditos, 2011, tradução de Maria Irene Carvalho,
Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-224-029-4.
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