«(…)
Aliás, minhas pernas não me sustentariam, acrescentou ele. Por que não as
exercitais um pouco? Saí dessa cama. Além disso, eu vos carregarei, já vos
disse.
Isso!
Vais carregar-me por cima das muralhas, e depois para a água, eu, que não sei
nadar. Vais levar-me a cabeça ao cepo, eis tudo, e a tua também. Deus talvez
esteja trabalhando na nossa libertação, e tu vais arruinar tudo com essa
loucura em que te obstinas. É sempre assim: a revolta está no sangue dos
Mortimer. Lembra-te do primeiro Rogério, filho do bispo e da filha do rei
Herfast da Dinamarca. Batera todo o exército do rei da França sob as muralhas
de seu castelo de Mortimer-en-Bray. Entretanto, de tal maneira ofendeu o
Conquistador, nosso primo, que todas as suas terras e bens lhe foram
confiscados... Sentado no escabelo, Rogério, o Jovem, cruzou os braços, fechou os olhos e recostou-se um pouco
para apoiar as costas à parede. Era preciso deixar que a invocação diária dos
antepassados acabasse, era preciso ouvir pela centésima vez como Ralph, o Barbudo, filho do primeiro Rogério,
havia desembarcado na Inglaterra, ao lado do duque Guilherme, e como recebera
Wigmore em feudo, e por que, desde então, os Mortimer eram poderosos em quatro
condados.
Do
refeitório vinham as canções báquicas que os soldados vociferavam ao fim da
refeição. Por favor, meu tio, disse Mortimer, deixai um pouco os nossos avós.
Não tenho, como vos acontece, tanta pressa assim de ir ter com eles. Sim, sei
que descendemos do sangue de um rei. Mas numa prisão o sangue dos reis pouco
vale. O gládio de Herfast por acaso nos irá libertar agora? Onde estão as
nossas terras? Entregam-nos nossas rendas aqui neste calabouço? E quando tiver
acabado de ouvir de vossos lábios os nomes de nossas avós: Hadewige, Melisanda,
Matilde, a Sovina, Walcheline de Ferrers, Gladousa de Braose, serão elas as
únicas mulheres com quem poderei sonhar até meu último suspiro?
O
ancião ficou um momento perplexo, contemplando distraidamente sua mão inchada,
de unhas desmesuradamente longas e rachadas. Cada qual povoa sua prisão como
pode, disse. Os velhos com seu passado perdido, os jovens com o amanhã que não
chegarão a ver. Tu imaginas ser amado por toda a Inglaterra, acreditas que toda
a Inglaterra trabalha por ti, que o bispo de Orleton é teu amigo fiel, que a
própria rainha movimenta-se pela tua salvação, que logo partirás para a França,
para a Aquitânia, para a Provença..., que sei eu! E que ao longo do teu caminho
os sinos irão tocar, em repique de boas-vindas. Entretanto, verás que esta
noite ninguém aparecerá aqui. Passou os dedos sobre as pálpebras com um gesto
cansado, depois virou-se para a parede. Mortimer, o Jovem, voltou ao respiradouro, insinuou a mão entre as grades e
deixou-a cair, como se estivesse morta, sobre a poeira.
O
tio agora vai dormir até à noite, pensava ele. Depois, no derradeiro momento,
resolverá. Realmente, com ele não será fácil. E não irá fazer com que tudo malogre?...
Ah! Aí está Eduardo. A ave se detivera a pequena distância da mão inerte e
limpava o grande bico negro contra a pata. Se eu te estrangular, minha fuga
terá êxito. Se falhar, não conseguirei evadir-me. Não era mais um brinquedo,
era uma aposta com o destino. Para ocupar seu tempo de espera, para enganar sua
ansiedade, o prisioneiro sentia necessidade de fabricar presságios e vigiava,
com olho de caçador, o enorme corvo. Este, porém, como se tivesse percebido a
ameaça, afastou-se. Os homens saíam do refeitório, com a fisionomia toda
iluminada. Dividiam-se em pequenos grupos, através do pátio, para os jogos, as
corridas e as lutas que eram tradição de festa. Durante duas horas, com o busto
nu, suavam ao sol, rivalizando em força para se imobilizarem mutuamente contra
o chão, ou em habilidade para atirar clavas contra uma estaca de madeira.
Ouvia-se
o condestável gritar: O
prémio
do rei! Quem ganhará? Um xelim! Depois, quando o sol começava a baixar, os
soldados foram lavar-se nas cisternas, e, mais ruidosos do que pela manhã,
comentando suas façanhas ou suas derrotas, voltaram ao refeitório para de novo
comer e beber. Quem não
estivesse bêbado na noite das cadeias de São Pedro mereceria o desprezo de seus
companheiros! O prisioneiro ouvia-os
atirarem-se
ao vinho. A escuridão descia sobre o pátio, a sombra azulada das noites de Verão. E o cheiro
de lodo, vindo das valas do rio, fazia-se de novo sensível. Subitamente, um
crocitar furioso, rouco, prolongado, um desses gritos de animal que causam
inquietação aos homens, rasgou o ar diante do respiradouro. Que é isso?, perguntou o velho lorde de Chirk
do fundo da cela. Falhei, disse o
sobrinho. Agarrei-o pela asa, em lugar de agarrá-lo pelo pescoço. Conservava
nos dedos algumas penas pretas que contemplava tristemente à incerta luz do
crepúsculo. O corvo desaparecera, e, dessa vez, não mais voltaria». In Maurice Druon, Os Reis Malditos,
A Loba de França, 1965, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2006,
ISBN 978-972-42-3862-3.
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