Ossos
velhos
«(…)
Bons-dias..., disse D’Agosta. Na obscuridade que reinava sob a ponte, o rosto
vermelhaço do tenente observava-os, de olhos piscos como um troglodita pálido a
procurar esconder-se da luz. Dirija-se a mim, chefe, respondeu o brigadeiro
enquanto prendia um batímetro ao pulso. O que foi que aconteceu? A captura deu
para o torto. Afinal o tipo não passava de um mensageiro. Despejou a mercadoria
pela borda da ponte. D’Agosta apontou com o queixo na direcção da estrutura
superior. A seguir disparou sobre um polícia e deram-lhe cabo do canastro. Se
conseguirmos encontrar o tijolo, podemos encerrar este caso de mer… O
brigadeiro suspirou: se limparam o sebo ao gajo o que é que nós estamos aqui
afazer? D’Agosta abanou a cabeça: como assim? Então vocês querem deixar um
tijolo de heroína que vale seiscentos mil dólares no fundo do canal? Snow
ergueu a cabeça. No meio das barras enegrecidas da ponte, podiam-se entrever as
fachadas calcinadas dos prédios. Mil janelas sebentas olhavam para o rio morto.
Foi uma pena o mensageiro ter sido obrigado a deitar tudo ao Humboldt Kill, ou
seja à Cloaca Máxima, assim chamada por se parecer com o sistema central
de esgotos da Roma Antiga. Chamavam-lhe Cloaca por causa da acumulação
centenária de fezes, desperdícios tóxicos, animais mortos e diclorobenzenos. Um
ramal do metro esforçava-se lá no alto, entre mil estremecimentos e guinchos.
Por baixo dos seus pés, a embarcação vibrava e a superfície viscosa da água
espessa parecia igualmente tremelicar, como um pudim de gelatina.
Tudo
bem, malta, ouviu o brigadeiro dizer. Vamos lá molhar-nos! Snow afadigou-se a
apertar o fato. Sabia que era um mergulhador de primeira qualidade. Crescera em
Portsmouth, vivera praticamente ao lado do rio Piscataqua, e já tinha salvado
umas quantas vidas humanas. Anos mais tarde, no Mar de Cortez caçara tubarões e
mergulhara a mais de sessenta metros de profundidade. Apesar de tanta
experiência anterior este mergulho não lhe inspirava grande confiança. Embora Snow
nunca tivesse explorado esta zona, o grupo estava sempre a referir-se a ela. De
todos os lugares infectos para se mergulhar na cidade de Nova Iorque, a Cloaca
era o pior de todos: pior ainda do que o Arthur Kill, Hell Gate, ou mesmo o Canal
de Gowanus. Certo dia, disseram-lhe que este fora em tempos um afluente importante
do rio Hudson, que atravessava Manhattan de um lado ao outro, a sul de Sugar Hill,
em Harlem. Mas séculos de desperdícios, construções desordenadas e consequente abandono
tinham-no transformado numa fita estagnada e imóvel de porcaria: como se fosse um
caixote de lixo líquido onde se pudesse despejar tudo o que coubesse na imaginação.
Snow esperou pela sua vez para retirar
as garrafas de oxigénio do depósito de aço inoxidável e em seguida aproximou-se
da popa enquanto as prendia aos ombros. Ainda não estava habituado a este tipo de
fato de mergulho pesado e constritor de movimentos. Pelo canto do olho viu o brigadeiro
a aproximar-se: Tudo pronto?, disse a voz calma de barítono. Acho que sim, chefe,
respondeu Snow. E as lanternas para a cabeça? O brigadeiro ficou a olhar para ele.
Estes prédios cortam toda a luz do dia. Vamos precisar de lanternas se quisermos
ver um palmo à frente do nariz. Correcto? O brigadeiro esboçou um sorriso: não
ia fazer diferença nenhuma. A Cloaca tem seis metros de profundidade. Por
baixo disso, existem cerca de três a quatro metros de lodo em suspensão. Logo que
as tuas barbatanas tocarem nele, este vai explodir como uma bomba de pó. Não vais
conseguir ver nada para lá da máscara. E por baixo do lodo ainda há dez metros de
lama. O tijolo vai estar enterrado algures, no meio dessa lama. Lá em baixo terás
de usar as mãos para ver.
Olhou
para Snow como se quisesse avaliá-lo e hesitou durante alguns instantes: Escuta,
prosseguiu em voz baixa, isto não vai ser como aqueles mergulhos de treino que fizeste
no Hudson. Só vieste connosco porque o Cooney e o Schultz ainda estão no
hospital. Snow concordou. Ambos os mergulhadores tinham apanhado uma blastos, lastomicose, uma
infecção fúngica que atacava os órgãos internos, enquanto procuravam por um corpo
cravejado de balas no interior de uma limusina no fundo do rio North. Apesar das
análises parasitológicas obrigatórias de oito em oito dias, não havia ano em que
uma nova doença bizarra não viesse arruinar a saúde dos mergulhadores. Não há problema
se não quiseres mergulhar desta vez, prosseguiu o brigadeiro. Podes ficar aqui,
no convés, a dar uma ajuda com as cordas de segurança». In Douglas Preston e Lincoln
Child, Relicário, O inferno fica debaixo da terra, tradução de João Barreiros,
Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.
Cortesia
de SEmergência/JDACT