Sono.
Sonhos
«(…)
À porta, que lentamente se abre, surge a enfermeira empurrando uma silenciosa mesa
de rodas que ostenta os seus hemisférios de metal cromado a reflectir as imagens
do universo debaixo da miniatura espectral da enfermeira dentro do minúsculo
quarto oval, aparecem o peito de frango, fumegante, o arroz de manteiga, a canja,
o pêssego, o sumo de laranja. Tenho apetite e reconheço os meus gostos. Ouço que
estou com melhor parecer e que
preciso de fazer a barba. Do meu rosto nem um traço. Esqueci o que era possível
esquecer e prolongo este momento até aos limites da minha vontade. Tarde ou cedo,
surgirá um espelho, e eu nele. Um espelho... Outra recordação... Dormito, imóvel
e obediente, e desse levíssimo sono regresso, três dias, três horas, três
séculos, são noções cujo rigor me não interessa, porque neste desinteresse está
a suspeita de uma outra memória, da minha vontade e da esperança insensata; entrevejo
o esboço de uma cópula e de uma guerra e não sei qual durou mais, mas obrigo-me
a optar, e escolho a cópula, encerrado na minha fortaleza branca de doente.
Vem o médico. Toma-me o pulso e fala.
Respondo sem aplicação, por delicadeza. Sou, portanto, bem-educado, tenho uma
família que se ocupou de mim, da minha instrução, e me preparou para a vida...
Para ver o primeiro cadáver tive que me pôr em bicos de pés e espreitar para dentro
do caixão: era uma velhinha mirrada, uma tia de oitenta anos a quem tinham
tirado a dentadura e que estava em frente do altar, aconchegada entre flores e
com um crucifixo entre as mãos; o cheiro da cera e do pólen fez-me espirrar e outra
tia, com menos quarenta anos que a defunta, assoou-me a um lenço branco; todas as
mulheres da família e as suas melhores amigas estavam sentadas à volta do caixão
e suspiravam ou fungavam; todos os homens da família e os seus melhores amigos estavam
na sacristia e falavam em voz baixa do preço do trigo e da guerra na Alemanha...
O suor
arrefece no meu corpo. Acabei de ver as três rodas com impressionante nitidez, a
do meio girava velozmente no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio e as outras
duas estavam imóveis; todas brilhavam e eram feitas de metais diferentes. Acho que
não se tratava de um sonho e que há alguma coisa na memória que não é possível violar;
na verdade, existe muito viva em mim a recordação de tudo o que não fiz, de tudo
o que não criei, uma herança infinitamente mais vasta do que a possibilidade de
a esquecer e me transforma numa ínfima partícula fechada na humilde casca de uma
realidade adiada, eternamente. Agora, não só conheci as três rodas do Labirinto da Fortuna, de Juan Mena, a
roda imóvel do passado, a roda girando do presente e a roda imóvel do futuro, coisas
que assim deixaram de ser meros símbolos. Eu julgava que o homem já tinha feito
Deus à sua imagem e semelhança mas afinal, Deus não está ainda feito, nem estará
nunca, ele é esta tarefa interminável e constante. Mas onde é que descansa? Senhor, responde Marcel, descanso na Providência,
Mas não consigo lembrar-me de onde saiu esta ironia». In Álvaro Guerra, O Capitão Nemo e
Eu, Crónica das horas aparentes, Publicações dom Quixote, 1973, 2000, ISBN
972-201-828-0.
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