Vestígios
de Guerra
«Políbio de Megalópolis, a partir
de um desfiladeiro nos Alpes italianos, olhou para baixo e avistou as ricas e verdes
planícies da Lombardia. Foi a mesma vista convidativa que setenta e três anos antes
Aníbal
mostrara ao seu exército meio esfomeado, meio enregelado e completamente
desanimado, encorajando-o a manter o rumo no que viria a revelar-se um incríve1
caminho de conquista. Muito provavelmente, mantinham-se visíveis vestígios
suficientes daquela tropa cansada para Políbio ter a certeza de estar no sítio certo;
uma certeza negada por cronistas futuros, dando azo à uma das controvérsias mais
duradouras e fúteis de toda a história antiga: onde exactamente atravessou Aníbal
os Alpes? Políbio, por seu lado, estava livre para se concentrar em questões que
considerava mais importantes. Tinha como objectivo, um esforço que acabaria por
preencher quarenta livros, explicar aos seus compatriotas gregos como uma até então
obscura cidade-estado na península itálica veio a dominar, praticamente no curso
de uma vida, todo o mundo mediterrânico. Mas se Roma estava no centro das investigações
de Políbio, Aníbal e Cartago eram a sua atracção. Cada um à sua maneira esteve perto
de destruir as ambições romanas. Ambos, por esta altura, estavam mortos, obliterados
por Roma, mas foram os desafios que eles lançaram e os desastres que infligiram
que Políbio considerou ser mais atractivo. Não importava quão más as coisas se tornavam,
pois Roma conseguira sempre responder, conseguira sempre sair das cinzas da
história e continuar em frente. E era mais na derrota do que na vitória que Políbio
via a essência da grandeza de Roma.
Canas foi o auge. A 2 de Agosto
de 216 a. C., um terrível e apocalíptico
dia no sul de Itália, 120 000 homens envolvidos no que acabou por ser uma enorme
luta de espadas. No fim da contenda, pelo menos 48 000 romanos estavam mortos ou
moribundos, estendidos em poças do seu próprio sangue, vómito e fezes, mortos das
formas mais incríveis c terríveis, com os membros arrancados, os rostos, peitos
e abdómenes perfurados e mutilados. Assim foi Canas, um evento celebrado e estudado
enquanto paradigma de Aníbal para futuros praticantes das artes militares, a apoteose
da vitória decisiva. Roma, por outro lado, perdeu, sofrendo nesse dia mais baixas
que os EUA durante toda a guerra no Vietname, mais baixas que qualquer outro exército
ou qualquer dia da batalha em toda a história militar ocidental. Pior ainda, Canas
culminava uma série de derrotas engendradas pelo próprio Aníbal, personificação
do castigo merecido infligido a Roma, que atacaria a Itália por mais treze anos,
derrotando exército atrás de exército e general atrás de general. Contudo, nada
disto teria comparação com aquela terrível tarde de Agosto.
Tem-se
defendido que Políbio, consciente da enorme importância simbólica de Danas, estruturou
deliberadamente e sua história para fazer com que a batalha parecesse o
absoluto ponto mais baixo da fortuna romana, daí exagerar na sua importância. Porém,
os números totais não só defendem o contrário, como também nesse dia Roma
perdeu uma parte significativa dos seus líderes, entre um quarto e um terço do Senado,
cujos membros se mostravam ansiosos por estar presentes no que se pensava vir a
ser um grande triunfo. Ao invés, foi um total fracasso, tanto assim que é possível
provar que a Batalha de Canas foi ainda mais decisiva do que Políbio
acreditava ter sido. Em retrospectiva, trata-se de um ponto crucial na história
de Roma. É indiscutível que os acontecimentos desse mês de Agosto ou começaram ou
aceleraram a tendência de empurrar Roma da municipalidade para o império, da
oligarquia republicana para a autocracia, da milícia para o exército
profissional, de um reino de donos de terras para um reino de escravos e propriedades.
E, o talismã de todas estas mudanças foi um sobrevivente sortudo, um jovem
tribuno militar chamado Públio Cornélio Cipião, conhecido na história com a alcunha
de Africano, visto que ao fim de muitos
anos de guerra, Roma ainda precisaria de um general e de um exército suficientemente
bons para derrotar Aníbal, e Cipião Africano, com a ajuda do que restava dos refugiados
desonrados no campo de batalha, atenderia à chamada e poria tudo em marcha». In Robert
O’Connell, Cartago e o Pesadelo da República Romana, 2010, tradução de Dinis
Pires, Bertrand Editora, Lisboa, 2012, ISBN 978-972-252-419-3.
Cortesia
de BertrandE/JDACT