terça-feira, 15 de setembro de 2015

Goa Antiga e Moderna. Frederico Diniz D’Ayalla. « Depois da sua conquista pelos portugueses tem ela um lugar à parte, representa na História um papel seu, talvez devido ao deslocamento inesperado do grande ciclo da história do Oriente»

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Goa
«(…) De longe, destacam-se os beirais cingidos por um cinto de luz, as grandes cruzes das torres e dos adros como se fossem iluminadas a bicos de gás. Como as trevas são densas e a iluminação quase nenhuma, vêem-se os pirilampos elevando-se em espirais, que se deslocam lentamente, luzindo ora aqui, ora ali, como a coluna de fogo dos israelitas: aquelas noites são tagicamente belas! Seguem-se depois as de copiosa chuva, o coração de Inverno. Não há rajada de vento que açoite as árvores, nem trovoadas, nem relâmpagos, nada. A chuva desce em bátegas de água grossa e compacta. Sobre o Mandovi faz bulha de estalar de chicotes, sobre os tectos e reparos de ola, que resguardam todas as portas e janelas, faz ruído de vento quando açoita uma densa floresta. Noé abrindo o postigo da Arca não teria um espectáculo diferente. Todo o espaço como que se ilumina do brilho das águas; que parecem paredes de aço erguidas da tema ao céu. Tem este quadro alguma coisa de sinistro porque não tardam a carregar esse fim do mundo o ruído das paredes que se esboroam, os muros que se desmoronam, as fontes de água que rebentam pelos cantos da casa, as rãs que coaxam debaixo das nossas camas. Ninguém se ouve em meio deste ruído, e a gente que anda e fala pelos nossos aposentos parece fantasmas.
Estas noites, porém, não têm o frio das de cá. Na Europa o Inverno, ainda que moralizador, é triste e aflitivo. Traz-nos a ideia da fome e do desalento, das mães que apertam contra o seio os filhinhos enregelados, do operário entrevado que espera a caridade do mundo que odeia. O Inverno aqui é agressivo e obriga-nos a pensar tristemente no corpo que treme de frio e de fome. As noites da Europa são cruéis como o desalento; parecem zombar das vítimas e riem-se do infortúnio nas frias e secas nortadas do Inverno, supremo sarcasmo desta natureza rude e implacável. Nada tem do majestoso, do sublime horrível, dessa sensualidade geradora que, na Índia, parece convidar tudo à maternidade, ao amor: é frio e impassível como o cínico, sarcástico como a morte. Se canta, se ruge, se açoita a terra é como um espectro e não tem a pujança nem a beleza hórrida dos trópicos:

porque o Inverno aqui é um Inverno reles,
não tem o frio russo, que faz vestir peles,
nem das noites do Oriente a música bravia;
por isso sinto em mim a imensa nostalgia
das chuvas, dos trovões; dos gritos das torrentes
e do ulular feroz, longo do vendaval.
In G. M. Bareto

O quadro que tentámos apresentar daquela natureza pródiga e exuberante é, de todo o ponto, necessário para uma melhor compreensão da índole desse povo. Ao estudarmos a história social de Goa achamo-nos em frente de um assunto novo nos nossos fastos coloniais. Depois da sua conquista pelos portugueses tem ela um lugar à parte, representa na História um papel seu, talvez devido ao deslocamento inesperado do grande ciclo da história do Oriente. A Índia Portuguesa não é o Brasil por ser pobre, e por não ter nascido outro rei que tivesse o generoso amor de João VI pelos seus colonos; não é a Austrália, porque o elemento português não foi dominante, como o inglês; não é a América, livre e independente, por isso que o elemento branco, na maior parte militar, considerou sempre esse torrão vinculado aos seus mais gloriosos feitos e às mais soberbas páginas da história da máe-pátria. Como militares, eram os portugueses, por dever e por índole, fiéis ao rei e à pátria; como aristocratas, eram naturalmente conservadores e orgulhosos do seu passado. Tinham ido para a Índia a fim de se armarem cavaleiros, como seus pais o fizeram em Ceuta e Azamor. Não pode ser independente, íamos nós dizendo, porque o elemento indígena em Goa é heterogéneo, esfacelado em classes mais ou menos rivais, sem unidade histórica ou afinidade de carácter, raça ou religião. De um lado estão os hindus, quase metade da população, conservando a pureza da língua, vendo os cristãos como apóstatas e não querendo, de modo algum, transigir com a nova ordem de coisas; do outro, estão os cristãos, entre os quais a distinção de casas impera com maior furor. Possuem um dialecto adulterado, conservam muitos dos hábitos gentílicos e não possuem as aptidões industriais e comerciais desses seus irmãos». In Frederico Diniz D’Ayalla, Goa Antiga e Moderna, Ésquilo edições e multimédia, Revisão de Adalberto Alves, 2011, ISBN 978-989-719-001-8.

Para Ofélia e Álvaro José, que estejam em paz!

Cortesia de Ésquilo/JDACT