De acordo com o
original!
Carreira dos Tolos. Modistas
«(…) Fui crescendo, e
por casa nunca passei de trajar huma comprida saia de primavera muito aceada:
hum bajú de folhos brancos, hum avental de escorcia, ou caça de riscas, tudo muito
limpinho; humas roupinhas de cabaia, ou nobreza, hum lenço de folhos muito
pregado, e muito concertado, que cobria com modestia o que tanto hoje se
descobre. Punha no pescoço huma gargantilha de vedrilhos pretos, ou velorios; outras
vezes huma colleira de folhos franzidos, que compunha muito a garganta. Ornava
o peito com as viçosas flores, que Deos cria, e tinha no meu quintal, meia duzia
de cravos, duas rosas, quatro jasmins de Italia, humas chagas, e alguns martyrios,
guarnecido tudo de manjerona, e alecrim: flores estas, que pouco, e pouco se lhes
vai perdendo a semente; e se se achão ainda, he só em alguma cêrca de Freiras,
porque hoje o que se vê pelas janellas de Lisboa são hervas botanicas, chorões
balsiminas, tomates de França, e poracaso hum craveiro: que tanto póde a
mudança do gosto, e dos usos!
Algum dia nunca o meu
toucado passou de huma grande trança de cabello, cahida pelas costas abaixo,
com três, ou quatro laços de fita; o cabello de diante levantado acima, fazendo
hum capote bicudo, que desafrontava toda a testa; e este topete cheio de
travessinhas de tartaruga, tendo á ilharga da parte direita huma assembléa, que
vinha a ser hum palmito de flores, ou de fofos de fita. A mesma cabeça se
aceava com espirito de vergamota, com banha de flor, ou com óleo de jasmins, e
outras pomadas de cheiros, a que os pós amarellos vinhão fazer matiz. Nas
orelhas trazia huns brincos de ouro, e não ouro mascarado, com suas lasquinhas
de diamantes, que vinha a ser laço, e pingente. Deste modo apparecia na sala
das visitas ás minhas amigas, com o maior recato, e comedimento, que hoje raras
vezes se vê.
Ora como os dentes me
nascêrão com esta modéstia, não posso levar á paciência, que hoje até muitas da
minha idade cortem os seus cabellos, para se fazerem Marias do Monte. Chegámos
ao tempo das mulheres botarem os cotovellos de fóra era todo o sentido; e como
esta não foi a minha creação, e hoje tudo o que vejo, para mim he Grego, ando
pelas ruas da Cidade, como vendida, feita huma tôla: e por isso me resolvo a ir
para essa terra, aonde a gente se esquece do passado, para viver sem tanta inquietação;
porque quando vejo huma mulher na rua, revolvo-me toda, toda me arrepío, e até
me dão engulho de vomitar». In José Daniel Rodrigues da Costa, Barco da
Carreira dos Tolos, Obra Crítica, Moral e Divertida, RB196984, University of
Toronto, Typographia de Elias José Costa Sanches, Lisboa, 1850.
Cortesia de T.Sanches/JDACT