sexta-feira, 4 de setembro de 2015

A Flor-de-Lis e o Leão. Os Reis Malditos. Maurice Druon. « Sabia além disso que por causa dele começava a ser conhecida como a ‘Loba de França’. Seria possível que chegasse ao ponto de querer impedi-la de pensar, num dia de casamento…»

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Os novos reis. O casamento de Janeiro
«(…) O arcebispo tomou, de uma bandeja estendida por um segundo prelado, o anel de ouro incrustado de rubis que acabava de benzer e entregou-o ao rei. O anel estava molhado, como tudo aquilo em que alguém tocava no meio da bruma. Em seguida, docemente, o arcebispo aproximou as mãos dos esposos. Em nome do Pai, pronunciou Eduardo, pondo o anel, sem o enfiar, sobre a extremidade do polegar de Filipa. Em nome do Filho e do Espírito Santo..., disse, repetindo o gesto sobre o indicador e depois sobre o médio. Por fim fez deslizar o anel pelo dedo anular e acrescentou: Ámen! Filipa era sua mulher. Como qualquer mulher que casa o filho, Isabel tinha lágrimas nos olhos. Esforçava-se por pedir a Deus que concedesse felicidade a seu filho, mas era sobretudo em si mesma que pensava, e sofria. Os últimos dias haviam preparado aquele momento, em que deixara de ser a primeira no coração do filho e da sua casa. Não que tivesse, nem quanto à autoridade na corte nem quanto à beleza, o que quer que fosse a recear da comparação com a pequena pirâmide de veludo e de rendas que o destino lhe reservara para nora.
Direita, esbelta e loura, com as belas tranças douradas enroladas dos dois lados do rosto, aos trinta e seis anos Isabel não parecia ter mais de trinta. O espelho longamente consultado nessa mesma manhã, quando punha a coroa para assistir à cerimónia, tranquilizara-a. Contudo, nesse mesmo dia deixara de ser apenas a rainha para passar a ser a rainha-mãe. Como pudera tudo aquilo acontecer tão depressa? Como tinham desaparecido vinte anos da sua vida, atravessados por tantas tempestades, daquela maneira, sem que desse por isso? Lembrava-se do seu próprio casamento, há precisamente vinte anos, num fim de Janeiro como aquele, também enevoado, em Boulogne, França. Também ela casara acreditando na felicidade, e pronunciara os seus votos acreditando no que dizia do fundo do coração. Mas não fazia ideia de quem desposara para satisfazer os interesses dos dois reinos. Não fazia ideia de que, em paga do seu amor e da sua dedicação, apenas receberia desprezo, ódio e humilhações, de que seria suplantada no leito do marido não por mulheres, mas sim por homens oportunistas e espalhafatosos, que o seu dote seria pilhado e que teria de fugir para o exílio a fim de salvar a sua vida ameaçada e reunir um exército para abater o homem que fizera deslizar pelo seu dedo a aliança nupcial.
A jovem Filipa tinha sem dúvida mais sorte: além de desposada era amada. Só os primeiros casamentos podem ser plenamente puros e felizes. Quando não o são, não há nada que possa substituí-los. Os amores que se seguem nunca alcançam a mesma perfeição e brilho. Mesmo quando parecem sólidos como rochas, corre no seu mármore sangue de uma outra cor, que é como o sangue seco do passado. A rainha Isabel voltou-se para Rogério Mortimer, barão de Wigmore, seu amante e o homem que, tanto graças a ela como a ele próprio, mandava como senhor em Inglaterra em nome do jovem rei. De sobrancelhas unidas, traços severos e braços cruzados sobre o manto sumptuoso, olhava-a nesse preciso momento, com um olhar sem bondade. Adivinhou o que estou a pensar, disse a rainha para consigo. Como é possível que me faça recear cometer um pecado apenas por não pensar nele por um segundo?
Isabel conhecia o carácter sombrio do amante, e sorriu-lhe para o apaziguar. Que queria ele além do que já tinha! Viviam como marido e mulher, embora ela fosse rainha e ele casado, e todo o reino estava a par dos seus amores. Ela própria manobrara de maneira que ele tivesse o domínio total do poder no reino. Mortimer nomeava os seus amigos para rodos os lugares, apoderara-se de todos os domínios dos antigos favoritos de Eduardo II e o Conselho para pouco mais servia que para validar os seus desejos. Mortimer conseguira mesmo que ela consentisse na execução do seu marido, caído em desgraça. Sabia além disso que por causa dele começava a ser conhecida como a Loba de França. Seria possível que chegasse ao ponto de querer impedi-la de pensar, num dia de casamento, no seu marido assassinado, especialmente quando o seu executor estava ali presente, na pessoa de João Maltravers, promovido pouco antes a senescal de Inglaterra? O seu rosto longo e sinistro estava entre os dos grandes senhores, como para recordar o seu crime». In Maurice Druon, 1966, Os Reis Inimigos, A Flor-de-Lis e o Leão, tradução de Helena Ramos, Círculo de Leitores, 2007, ISBN 978-972-42-3926-2.

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