quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «Dois annos depois. Tarde d’agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n’uma sombra egual, e embaciavam ainda o poente as suaves, brandas pulverizações…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) E piamente, como fanatico, achava verosimil a lenda da burra que fallou, historia que uma tarde, passando, o abbade lhe contara. Tanto que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, extranhou com certo desgosto que o Sultão lhe não respondesse: boas noites! Mas o demonio, que sempre as arma, armou-lh’a tambem um dia! Foi ao cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro. Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme, e além de enorme,-gelada... Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua. Ó Josefa! A mulher assomou á janella, sobresaltada. Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?! Que te roubaram o quê?, fez Josefa, muito attonita. O burro, o Sultão! Vem cá ver que m’o roubaram! E como ao tempo acudira já o Manoel, em camisa, descalço, romperam todos tres na gritaria, defronte do cortelho vazio: á d’el-rei! Á d'el-rei! Á d'el-rei! Até que o regedor, que era compadre, intervindo estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que compareceram.
Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adeante, e desfechando ao peito abatido do Thomé a negra e vazia palavra: Nada!...

Dois annos depois. Tarde d’agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n’uma sombra egual, e embaciavam ainda o poente as suaves, brandas pulverisações doiradas da ultima luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao rubro, destacavam immoveis n’um fundo verde-mar, esvaecido e meigo, raiado de listrões de uma coloração leve de laranja. Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve, cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do azul. N’um deslado, sob  os castanheiros proximos, surgiam os telhados da aldeia, a torre branca da igreja, as paredes caiadas da escola. A vasta eira commum, levemente accidentada, apresentava áquella hora o aspecto tranquillo e de paz de uma grande officina em repouso. Poucas mêdas, iam no fim as colheitas: mais uma semana, duas quando muito, e estaria tudo recolhido. Já sobre a palha das parvas ou ao sopé das mêdas altas, entre os utensilios da trilha e a creançada estridula que brincava, os da lavoura descançavam, vermelhos da soalheira intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito nú, arregaçados os braços musculosos, n’uma prostração regalada de matilha que alfim tem a sua hora de socego, após um dia de caçada. Parecem prostrados da fadiga os proprios malhos, os trilhos, as pás, os baleios que levaram todo o santo dia varrendo o chão em volta das parvas. E aqui e ali, dando uma sensação agradavel de fartura, perfilam-se os altos saccos no meio das rasas, extravasando de grão.
Além, gente em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de palha triturada, vae limpando, visto que sopra um ventinho. E sente-se sobre as pás a chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha, voando, faz monte da outra banda, e os baleios, em mãos de mulheres, não cessam de arrebanhar o grão, altissimas angarellas, vae-se enchendo de palha; emquanto outros, atulhados de saccos, em rimas entre as cancellas mais baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos bois gigantes. Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêllo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos asperos dos castanheiros a enorme corpolencia, fartar o largo bandulho á serena agua das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciaveis no meio da agua em que se atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em côro. Acabara de ensacar-se o ultimo grão da farta colheita do Thomé da Eira. Colheita rica, sim senhor!, vinham dizer-lhe os visinhos. A primeira da aldeia! Qual?, isso sim!, vão vocês vêr a tulha. Muita palha, é que vocês hão de dizer, muita palha e pouco grão... E muito azafamado, sem prosapias de maioral nem geitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, O Thomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as ultimas tarefas. Ahi vae um sacco, ó tu! É p’r’as rabeiras. Que não fique nem um grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que não fique por ahi alguma coisa esquecida: essas pás, esses baleios, tudo isso. Margarida!, ó Margarida!, qu’é da tua rasa? Deixa!, se vae no carro está bem. E era como um doido a metter-se no serviço de todos, muito expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se não deixassem agora dormir...» In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT