quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O Livro de Cale. Monge Negro. Carlos Cordeiro. «Embasbacados, gelaram de dúvida. No instante seguinte, o esquivo oponente estava nas suas costas, martelando-lhes os pescoços com dois valentes muros. Mais dois recuperavam…»

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Recontro em Mofatra
«(…) Acaso duvidais da promessa do anafado Pais?, indagou o primeiro. Nem os da minha casa eu afianço..., quanto mais subornos do perro abade - respondeu desabridamente o desdentado. Não vos amofineis. Dar-lhe-emos o que pediu, nem que seja o crânio de um vilão ébrio, sossegou-o o homem cheio de cicatrizes. Vamos é acabar com a barrica desta mistela que tendes na caneca, convidou. Enchei-me a caneca, barregã, vociferou outro, à passagem de Gilda. Os clientes habituais da estalagem já conheciam o estratagema da rapariga para controlar situações em que o excesso de bebida toldava o discernimento dos comensais. Se não assumissem que o vinho havia acabado, a rapariga recorreria a uma moca de grande dimensão, fatal se dirigida ao crânio mais duro dos mortais. Então, essa zurrapa vem ou não?, insistia o torpe, limpando um fio de sangue que lhe escorria da testa. Gilda aproximou-se do grupo e dirigiu-se ao homem. Já tendes o pouco que sobeja, informou. Por hoje, ficai com o que ainda vos dança na caneca. Esgotámos o vinho das barricas, desculpou-se a rapariga. Quereis mais pão?
Enquanto tentava serenar as exigências do grupo, Gilda reparou que o lugar no estrado estava agora ocupado por uma personagem que não identificou. Inclinou-se para ver melhor mas, de súbito, uma valente palmada no rabo fê-la cair sobre a mesa e entornar uma das canecas num um dos homens. Este disse de imediato: porca serviçal! O pouco que nos dás derrama-lo sobre mim?! Gilda não deu grande importância à observação, habituada que estava a desmandos semelhantes e frequentes. Contudo, assustou-se, ao ver crescer o homem para si, em atitude ameaçadora. Ainda tentou recuar até, ao local onde guardava a famigerada moca, mas não pôde avançar. O homem agarrou-a com uma mão e levantou a outra bem alto, com intenção de lhe bater. Em vão. A personagem que, antes, ocupava o estrado, estava diante do outro, desafiando-lhe o intento.
Era Bernardo, eivado de uma vontade fulminante de justiçar a afronta. Um instante de hesitação e o hirsuto caía no chão, atingido por uma manápula em plena glote. Gilda esquivou-se e correu a buscar a moca. Não contou, todavia, com um dos companheiros do desgraçado que, com um murro certeiro, a estirou no balcão. Os outros não tardaram a reagir. O homem coberto de cicatrizes pulou para a mesa mas, nesse preciso momento, sentiu um forte soco entre as ancas e caiu, contorcendo-se com dores. Outro, pequeno e esquivo, conseguiu agarrar a luva do opositor. Porém, não mais do que isso. Mal o fez, um punho férreo esborrachou-lhe o nariz, torcido em jorros de sangue. Os dois restantes já tinham os punhais em riste, frente ao misterioso agressor que, encostado a uma parede, sulcava com o olhar o local que o rodeava. Num ápice, desapareceu da vista dos dois homens. Embasbacados, gelaram de dúvida. No instante seguinte, o esquivo oponente estava nas suas costas, martelando-lhes os pescoços com dois valentes muros. Mais dois recuperavam, agarrando a pesada mesa que empurraram na direcção de Bernardo, entalando-o. Entretanto, Fernando entrou na liça, prostrando um dos agressores com uma pancada certeira no crânio.
Mas a investida ficou por ali. Lento de movimentos, não conseguiu fugir de uma cotovelada em cheio na cara, que o derrubou de imediato. Do outro lado da mesa, Bernardo estava entalado e mirava pelo canto do olho uma luminária de barro facilmente alcançável. Encolheu os ombros e levantou os braços em sinal de aparente rendição. Um dos homens largou a mesa. Subitamente, a luminária voou na direcção da sua cara. Pouco depois, o homem cambaleava, levava a mão aos olhos e gritava de dor. Bernardo empurrou a mesa e, como se de um aríete se tratasse, arrastou o outro contra o balaústre do estrado. O homem arregalou os olhos e, com um grito lancinante, desfaleceu com as pernas partidas. Já um punhal voava na direcção de Bernardo que, num esforço sobre-humano, saltou o corrimão e caiu em cima de uma mesa. Na sala, apenas rugiam imprecações e estremeciam feridos. Os aldeãos haviam desaparecido». In Carlos Cordeiro, O Livro de Cale, O Monge Negro, 1060-1089, Publicações Europa-América 2010, ISBN 978-972-1-06140-8.

Cortesia de PEAmérica/JDACT