sábado, 5 de setembro de 2015

Poesia. Lusíadas. Camões. «E porque está em extremo desejoso de te ver, como cousa nomeada, te roga que, de nada receoso, entres a barra, tu com toda armada; e porque do caminho trabalhoso trarás a gente débil e cansada, diz que na terra podes reformá-la, que a natureza obriga a desejá-la»

Cortesia de wikipedia

Canto II

I
«Já neste tempo o lúcido Planeta
que as horas vai do dia distinguindo,
chegava à desejada e lenta meta,
a luz celeste às gentes encobrindo;
e da casa marítima secreta
lhe estava o Deus Nocturno a porta abrindo,
quando as infidas gentes se chegaram
às naus, que pouco havia que ancoraram.

II
Dantre eles um, que traz encomendado
o mortífero engano, assi dizia:
capitão valeroso, que cortado
tens de Neptuno o reino e salsa via,
o Rei que manda esta Ilha, alvoraçado
da vinda tua, tem tanta alegria
que não deseja mais que agasalhar-te,
ver-te e do necessário reformar-te.

III
E porque está em extremo desejoso
de te ver, como cousa nomeada,
te roga que, de nada receoso,
entres a barra, tu com toda armada;
e porque do caminho trabalhoso
trarás a gente débil e cansada,
diz que na terra podes reformá-la,
que a natureza obriga a desejá-la.

V
Ao mensageiro o Capitão responde,
as palavras do Rei agradecendo,
e diz que, porque o Sol no mar se esconde,
não entra pera dentro, obedecendo;
porém que, como a luz mostrar por onde
vá sem perigo a frota, não temendo,
cumprirá sem receio seu mandado,
que a mais por tal senhor está obrigado.

VI
Pergunta-lhe despois se estão na terra
cristãos, como o piloto lhe dizia;
o mensageiro astuto, que não erra,
lhe diz que a mais da gente em Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
toda a suspeita e cauta fantasia;
por onde o Capitão seguramente
se fia da infiel e falsa gente.

VII
E de alguns que trazia, condenados
por culpas e por feitos vergonhosos,
por que pudessem ser aventurados
em casos desta sorte duvidosos,
manda dous mais sagazes, ensaiados,
por que notem dos Mouros enganosos
a cidade e poder, e por que vejam
os Cristãos, que só tanto ver desejam.

VIII
E por estes ao Rei presentes manda,
por que a boa vontade que mostrava
tenha firme, segura, limpa e branda,
a qual bem ao contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida e nefanda
das naus se despedia e o mar cortava:
foram com gestos ledos e fingidos
os dous da frota em terra recebidos.

IX
E despois que ao Rei apresentaram
co recado os presentes que traziam,
a cidade correram, e notaram
muito menos daquilo que queriam;
que os Mouros cautelosos se guardaram
de lhe mostrarem tudo o que pediam;
que onde reina a malícia, está o receio
que a faz imaginar no peito alheio.

X
Mas aquele que sempre a mocidade
tem no rosto perpétua, e foi nascido
de duas mães, que urdia a falsidade
por ver o navegante destruído,
estava nũa casa da cidade,
com rosto humano e hábito fingido,
mostrando-se Cristão, e fabricava
um altar sumptuoso que adorava.

XI
Ali tinha em retrato afigurada
do alto e Santo Espírito a pintura,
a cândida Pombinha, debuxada
sobre a única Fénix, virgem pura;
a companhia santa está pintada,
dos doze, tão torvados na figura
como os que, só das línguas que caíram
de fogo, várias línguas referiram.

XII
Aqui os dous companheiros, conduzidos
onde com este engano Baco estava,
põem em terra os giolhos, e os sentidos
naquele Deus que o Mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
na Pancaia odorífera, queimava
o Tioneu, e assi por derradeiro
o falso Deus adora o verdadeiro.

XIII
Aqui foram de noite agasalhados,
com todo o bom e honesto tratamento
os dous Cristãos, não vendo que enganados
os tinha o falso e santo fingimento.
Mas, assi como os raios espalhados
do Sol foram no mundo, e num momento
apareceu no rúbido Horizonte
na moça de Titão a roxa fronte.

XIV
Tornam da terra os Mouros co recado
do Rei pera que entrassem, e consigo
os dous que o Capitão tinha mandado,
a quem se o Rei mostrou sincero amigo;
e sendo o Português certificado
de não haver receio de perigo
e que gente de Cristo em terra havia,
dentro no salso rio entrar queria.

XV
Dizem-lhe os que mandou que em terra viram
sacras aras e sacerdote santo;
que ali se agasalharam e dormiram
enquanto a luz cobriu o escuro manto;
e que no Rei e gentes não sentiram
senão contentamento e gosto tanto
que não podia certo haver suspeita
nũa mostra tão clara e tão perfeita.

XVI
Co isto o nobre Gama recebia
alegremente os Mouros que subiam,
que levemente um ânimo se fia
de mostras que tão certas pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
deixando a bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos porque crêm
que a presa desejada certa têm».
[…]

In Luís de Camões, Canto II

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