Dezembro.
1265
«Ainda não tinha amanhecido
quando a morte acabou, finalmente, com a agonia que se estendera por dois dias
eternos, num longo adeus. No domingo, depois das Completas, Ubertino apercebeu-se
de que o abade cambaleava levemente, como se fosse um edifício frágil, a ponto de
se desmoronar. Agarrou-o, com força, pelo braço no preciso momento em que caía,
evitando que o ancião caísse de todo. A mão frágil e ossuda do velho abade agarrou-se
ao braço do monge, e este pôde ver o adeus definitivo naquele olhar vetusto. A neve,
que caíra durante toda a noite, tinha coberto o mosteiro com um fino lençol
branco e já só se via a sombra escura das paredes de pedra que se erguiam
naquele cenário desolador e embranquecido. Corria um vento gélido e forte, em rajadas
esporádicas que faziam rodopiar as folhas secas nos cantos mais recônditos do claustro.
Havia várias horas que toda a comunidade,
incluindo os noviços e todos os irmãos leigos que viviam no mosteiro, bem como todos
aqueles que, sabendo da iminência da morte do abade, se tinham dirigido ao templo,
rezava, no oratório, vários ofícios pela alma do moribundo. Os seus tristes salmos
rompiam o silêncio, acariciando a escuridão nocturna, e mantinham no ar a melodia
doce, pausada e harmónica, sustentada por um halo comedido, quase eterno. Mas
tudo isto foi interrompido pelo tanger repentino dos sinos, que dobravam a finados
num voltear constante e melancólico. De repente, Ubertino sentiu-se esgotado. Havia
mais de dois dias que não saía da enfermaria, agarrado à mão macilenta daquele
ancião que fora o seu guia desde a infância. Não quisera separar-se dele, pois,
na ânsia desesperada de não o perder, desejava estar ao seu lado quando soltasse
o último suspiro. Sentia-se extenuado, com o corpo dorido, mas o que lhe custava
mais era o sofrimento agonizante que se lhe cravara no coração.
No meio daquele torpor que transmite
a presença etérea da morte, observando a figura esquelética, quase cadavérica do
velho abade, Ubertino recordou a última conversa consciente que pudera manter com
ele havia menos de uma semana, pouco antes de o ancião ter mergulhado no estado
febril que prenunciava o fim inevitável. Encontrara o abade sentado sobre a pedra
do montículo que havia junto à parede do lado oeste da igreja, em cuja ladeira se
estendia o cemitério, lugar escolhido pelo ancião sempre que o Sol, generoso,
aquecia a terra. Passava horas ali, fitando o horizonte infinito com uma agradável
sensação de placidez, em total solidão, apenas com a companhia muda dos amigos
já perdidos. Ubertino aproximara-se dele porque fazia frio, apesar de aquela manhã
parecer um presente de um Outono já passado, como se o Sol estivesse a despedir-se
do ancião. Pater, devíeis entrar... Faz
demasiado frio para se estar aqui.
O ancião nem se mexeu. Repara, Ubertino...
Olha-me só para este céu... Os olhos do ancião pareciam fitar algum ponto para lá
do horizonte, e um sorriso sereno começou a desenhar-se-lhe no rosto. Pater, ficareis doente, se continuardes
aqui sentado. Foi então que o abade se virou para ele e o olhou surpreendido, como
se, de repente, se tivesse apercebido da sua presença e se alegrasse por o ver ali.
Ubertino, meu filho, quero que me faças uma coisa, quando eu morrer. A sua voz rasgada
deslizava-lhe por entre os lábios. Farei o que quiserdes, pater, mas tenho a esperança de só o fazer daqui a muito tempo.
O ancião
riu discretamente. Meu filho, não me queiras tanto mal, que já não posso com os
ossos e a minha cabeça vai sentindo cada vez mais dificuldade em submeter o corpo
à sua vontade! Ubertino agachou-se ao seu lado para ficar à altura dos seus olhos
e poder olhá-lo a direito. Apesar de tudo isso, preciso da vossa presença ao meu
lado. Por um instante, os olhares de ambos foram além dos respectivos rostos,
ao fundo dos olhos, até chegarem aos sentimentos mais profundos. Meu querido
Ubertino, estou muito velho e sinto-me cansado, disse o abade, com a expressão
quebrada pela nostalgia. Chegou a minha hora e aceito o meu destino tranquilo e
em paz. Esta frase fez estremecer o monge. O abade suspirou, como se a vida já lhe
pesasse. Pater, o que será de nós...?
O monge apertou a mão do ancião contra o peito, contendo um soluço emocionado.
Depois de um momento de silêncio, Ubertino fechou os olhos e ergueu a cara, soltando
um suspiro profundo e disposto a ouvir o ancião». In Paloma Shanchez-Garnica, A
Brisa do Oriente, 2009, tradução de Luís Coputinho, Saída de Emergência, 2012,
ISBN 978-989-637-411-2.
Cortesia
SEmergência/JDACT