terça-feira, 8 de setembro de 2015

A Alma Trocada. Rosa Lobato Faria. «Fixo a cortina de renda, talvez fora de moda mas tão próxima do meu imaginário. A luz de Lisboa, o Tejo, o céu sem nuvens dão-lhe reflexos azuis. Nunca estive neste quarto, nesta cama…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Resumo
«É um lugar-comum dizer-se que determinada orientação sexual não é uma escolha, porque, se fosse, ninguém escolheria o caminho mais difícil. Foi esse caminho mais difícil que Teófilo teve de percorrer, desde a incompatibilidade com os pais aos desencontros dentro de si próprio, chegando mesmo a acreditar que alguém lhe tinha trocado a alma... Cheiravas a feno e não sabias que o coração é um barco no tempo. Quando as aves do Verão demandarem o Sul virás devagar, abrirás a porta verde-escura e esperarás em vão pelo frémito do meu corpo. Não voltarei a passar o renque das azáleas, o muro onde o sol nasce, a chuva, para morrer nos teus braços. Aborda, desta vez, um tema diferente, o tema da homossexualidade masculina, num romance que, mantendo embora o tom poético que sempre tem caracterizado as criações da autora, se arrisca por caminhos até aqui pouco explorados na ficção portuguesa. Um romance que confirma Rosa Lobato de Faria como uma das vozes mais originais do nosso mundo literário».

«Finalmente o prazer. Farrapos de fantasias eróticas de toda uma vida, numa espiral onde rodopiavam emoções, sensações, esquecimento próprio, loucura, aceitação do animal em mim, do grito, da fome, da liberdade de ser e saber que se é. Apesar. Mau grado. Não obstante. Que se lixe. Finalmente o prazer. Tantas vezes sonhado, imaginado, desejado, pressentido. Puro e irracional. Irresponsável. A fúria da descoberta e depois a paz. Essa paz desconhecida, completa, apaziguadora. Pela primeira vez na vida, a plenitude. Dormi sobre isto e acordei feliz. Fixo a cortina de renda, talvez fora de moda mas tão próxima do meu imaginário. A luz de Lisboa, o Tejo, o céu sem nuvens dão-lhe reflexos azuis. Nunca estive neste quarto, nesta cama, mas conheço intimamente esta cortina. Sim, é a cortina do meu quarto em casa da minha avó alentejana.
As crianças têm de se alevantar quando o sol nasce, mandou dizer a avozinha, toca a saltar da cama que há muito mundo lá fora, os pintainhos estão a sair dos ovos, a vaca pariu um bezerrinho, está lá em baixo uma cesta de figos fresquinhos tapados com folhas de figueira e o seu pinguinho de mel, que os trouxe agora mesmo o tio Zé Ganhão, toca a alevantar que o pão está saídozinho do forno e a manteiga, na sua bacia de água com um bocadichito de sal, nem pode esperar para se derreter naquelas fatias, e o queijo e a marmelada, e os biscoitos de erva-doce e os beijos do Hugo, e as mãos do Hugo, e as palavras nunca ouvidas, nunca ditas. Toca a descer, que a avozinha não quer comer sem companhia na mesa grande da copa, já sabe como ela é, alevanta-se com as galinhas e quando são sete horas já está varadinha de fome. E a cortina a estremecer nas mãos da brisa eu, o Hugo
e a desenhar as rosas da renda na parede.
De manhã, o feno. A silhueta da carroça contra o horizonte, a azáfama dos pássaros. Eram as férias, tão diferentes do 6º andar em Lisboa, dos móveis soturnos da família do meu pai, da austeridade, da prisão. Isto não pode, aquilo não pode. E aquilo? Não, também não pode. No Alentejo a luz imensa, os cheiros diferentes, alfazema, carqueja, alecrim, hortelã, coentros e, logo ao acordar, a cortina de renda beija-me que afastada com a ponta do dedo indicador desvenda o olival com as suas folhinhas prateadas, os seus olhinhos pretos no tempo da apanha e mais longe o trigo, como um mar de ondas mansas, onde era bom perder-se, cuidado com os lacraus. O Hugo disse. Croissants e café à esquina da rua. Têm uma compota deliciosa de maçã. Vá lá. Um banho e enfrentar o mundo. E de súbito, no espelho, o esgar horrorizado da mãe. A reprovação do pai. Da Raquel. Do director do colégio. Dos alunos. Dos pais dos alunos. Do senhor Alberto do café. Dos fregueses habituais. Da rua inteira a ler-me o pecado na testa cuidado com os lacraus a testa de um rosto contente. Dar aulas de francês tem destas coisas. Como é que se diz épanoui em português? Descontraído, distendido? Desabrochado como as rosas de Malherbe? Parece que épanoui é mais distendido que distendido, mais descontraído que descontraído. Seja. A felicidade, em suma.
Quanto lixo metem na cabeça das crianças. Quanto preconceito idiota, quanta pressão, quanta norma. Normas, para que todos sejamos normais. Mas eu, com pretensões na área da escrita, nunca serei normal. Aulas de francês, muito bem. Fino, até. Mas escrever? Veja lá se arranja um hobby mais útil ou mais sociável, que não seja preciso esconder como se fosse uma doença. Sinto o doce sabor da vingança ao transgredir as normas. Não foi por isso que o fiz, nem pensei em tal, só na turva premência do desejo, nos olhos, nas mãos do Hugo. O sangue espesso, a boca seca. Mas agora reconheço que a vingança tem o gosto bom da compota de maçã, partilhada à vista de todos, numa manhã de sol. Só que, aos poucos, a norma que trago cosida à consciência com uma linha indestrutível fala mais alto. Hugo, isto não pode voltar a acontecer. Mas porquê, caramba. Porquê? Sabes perfeitamente que a minha família, o noivado, o colégio... E tu? Não pensas existir como pessoa, tu? Dá-me tempo. Quanto tempo? Tens vinte e seis anos. Eu sei. E então? Preparar as coisas, falar com os meus pais, romper o noivado... Ah. Romper a mer… do noivado.
Não pretendo ter amantes depois do casamento. Nem antes, pelos vistos. Tem que ser um segredo nosso, Hugo. Não me entregues. Achas-me capaz de te atraiçoar? Não, nem por sombras. Até parece. Por isso agora..., meu querido..., vamos ficar assim. Tu é que sabes, Teófilo. Tu é que sabes. Teófilo Deus Ferreira Mendonça, poder-se-ia dizer Pleonasmo Ferreira Mendonça. João Teófilo de Deus Ferreira era o meu avô alentejano, pai da minha mãe, engenheiro agrónomo, agricultor e proprietário, homem bonacheirão e generoso, dizem-me, que não o conheci. Morreu no dia em que fui concebido e a minha mãe, se bem a conheço, deve até hoje arrepelar-se de remorsos por estar a fornicar com o meu pai à hora em que o meu avô se despedia deste mundo. Como se a morte não fosse um apelo à vida e a vida a lógica substituta da morte». In Rosa Lobato Faria, A Alma Trocada, Edições ASA, Autores Contemporâneos de Língua Portuguesa, Porto, 2007, ISBN 978-972-415-283-7.

Cortesia de ASA/JDACT