sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Os Teatros de Lisboa. 1874. Júlio C. Machado. «Todo elle reticencias. Grandes pausas, de umas que comovem o Stark na platea ao ponto de o fazer irromper em doces lagrimas. Alto gesto, passo de tapete, phisionomia de retrato antigo, retrato de antepassado illustre; grande sabor de dignidade, aroma de nobreza…»

Bordalo Pinheiro
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De acordo com o original

«(…) De outras vezes, homem de vivacidade e de expansão, da alegre folia, da extravagância elegante. Bebe, grita, ri. Almoça com patuscos; janta festivamente; ceia com as bellas, duas, três bellas; nunca menos d’isso. É pimpão, é intrépido, fica leve apesar de gordo, é catita, é gingão, é estróina. Deixa de ser dogmático, entra pelo papel da peça e pela alegria como nós por nossa casa. Um folião. De outras, grave, austero, pesando as syllabas, calculando as intenções.
Todo elle reticencias. Grandes pausas, de umas que comovem o Stark na platea ao ponto de o fazer irromper em doces lagrimas. Alto gesto, passo de tapete, phisionomia de retrato antigo, retrato de antepassado illustre; grande sabor de dignidade, aroma de nobreza, muito serio, muito serio. Aquillo a que o povo chama um homem de capitulo! Ainda d’outras, a facilidade moderna, um conversador, um diseur, o tom amplo da experiência e da sociedade, o gesto largo dos homens de mundo, mil segredos de declamação imitando a extrema naturalidade, a mais artificial accentuação, e a mais difficil, de quantas ha. Chegam as senhoras nos camarotes a dizer ás vezes com sinceridade a seus maridos: Gostava que tu fosses assim! Pois eu não! É bom no theatro; mas querias que eu fosse assim na rua Augusta? É um galã, é um centro, é um gracioso?
É tudo isto talvez; não é talvez nada d’isto : é um actor de hoje, para as peças de Augier, de Dumas filho, de Sardou, uma natureza de artista essencialmente moderna, creada nas leituras de Balzac, de Dumas e de Musset: a melancholia de um philosopho, a imaginação de um imprudente, a extravagância de um phantasista, e uma alma ardente no fundo de tudo isto: alma de bons voos, desprendida de misérias: susceptivel de abater as azas para seguir um capricho louco, mas sabendo elevar-se pelo sentimento, pela aspiração para a arte, pelo culto do bello; meio Kean, meio Don Juan; excêntrico nas toilettes, talvez excêntrico na vida, mas tendo a qualidade rarissima da gratidão, que imporia a lealdade para com os homens, e, o que é mais, a honestidade para com as mulheres. Não a honestidade de José do Egypto, de lhes querer fugir com o capote, mas a de as agasalhar com elle. Gomo vão longe os que lhe foram mestres, e os que lhe serviram talvez de tentação para seguir os destinos da vida de theatro! Vamos parecer velhos, se fallarmos de e entretanto é preciso fallar, não ha remédio: fallemos.
Lembram-se bem d'elle? Na estatura, na sobranceria, havia o seu quê de similhança com o heroe dos Solteirões... Parece-me estar vendo ainda esse original actor, que, quando não estava no palco estava no camarim: quando não estava no camarim nem no palco, estava no salão: e quando não estava no salão, no palco, nem no camarim... passeava no Rocio a olhar para o theatro!... Era um caracter melancólico, como que farto do espectáculo das coisas humanas: espirito comtemplativo, pouco accessivel ás manifestações sempre novas da arte, e havendo concentrado o seu pensamento num ponto fixo, substituir a velha declamação de theatro, pela eschola franceza de mil oitocentos e trinta; e que, nos últimos annos da sua existência, não se lembrou que era tempo de que a eschola da forma singela substituisse essa declamação emphatica, plangente, cadenceada, que fizera, como que n’uma revolução, as delicias da sua épocha, mas que as leis do gosto tinham ainda de modificar». In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de LEMMoreira/1874/Bordalo Pinheiro/JDACT