Cortesia
de wikipedia e jdact
De
acordo com o original
Angélica
«O
capitão-mor de Cabeceiras de Basto morria por ela. Dois frades Bentos de S. Miguel
de Refojos andavam como energúmenos desde que a lobrigaram na sua igreja. O
juiz ordinário, o alferes de milícias, o juiz dos órfãos, o escrivão das sisas,
o boticário e o mestre-escola farejavam-na, tanto à inveja, que a rapariga,
quando eles, um por cada vez, se lhe faziam encontradiços, resmoneava, formando
com os dedos uma figa oculta: eu tarrenego, diabo! E apertava o passo com os
olhos no chão e o credo na boca. Desculpemo-los sem exceção dos frades. Pobres
rapazes!, nenhum ainda tinha vinte e seis anos. Espadaúdos, vermelhaços, beiços
grossos e rosados, narizes de água, sadios como duas montanhas!... Frades, sem
fé, sem esperança, sem caridade! Desculpemo-los todos; que a culpa não na
tinham eles nem ela. A culpa era o fomes peccati, a isca do pecado,
boas palavras com que os santos padres explicam uma coisa simplíssima que os
rouxinóis dizem em regorjeados trilos, e os poetas em madrigais de esmadrigadas
cantilenas, e os outros indivíduos todos, ao seu modo, desde o urro atroador do
leão Hircano até ao guincho estridente da água do Hermínio. Angélica Florinda
era a tentação, dos homens e dos anjos, inclusos os seres intermédios do género
humano e dos serafins: os frades. Alta, reforçada, nalgas e espáduas boleadas,
breve cintura separando os tumentes seios das ancas maciças e rotundas, cabelos
em ondas lustrosas de azeviche, as sobrancelhas cerradas e indistintas, olhos
pestanudos e piscos, dentes de imaculado esmalte, o beiço superior orlado de um
debrum penugento, e o inferior carnoso, cor de cravelina. A tez sobre o moreno,
com a sua zona rosada em cada face. A forma do rosto oblonga, testa escantuda,
barba tirante a redonda e fendida a meio levemente no lóbulo.
Eu
não sei se este debuxo dá a perceber os mais donairosos, engraçados e louçãos dezessete
anos de rapariga do concelho de Cabeceiras de Basto! S. Pedro de Alvite era a
freguesia dela. Tinha Angélica pai e mãe, lavradores medianos, conhecidos pelo
assento da sua casa no cabeço de um oiteirinho. Daí vinha chamarem-lhes: os do
picoto; ou então, ao pai o Joaquim da Teresa, e à mãe a Teresa do Joaquim. Tem
certa poesia este recíproco senhorio dos nomes entre marido e mulher, lá nas
aldeias, onde nomes e almas, tanto monta, são bem e invejavelmente uma só alma
e nome. A filha, seis léguas em volta, era conhecida pela Angélica do picoto. Dizia
o tio Joaquim da Teresa que a sua filha não casava com algum dos lavradores que
lha tinham pedido, porque um tio materno, estabelecido em Pernambuco, a vira,
quando veio à terra, tendo doze anos a rapariga, e prometera vir casar com a sobrinha,
assim que ela perfizesse os dezenove. Este almejado tio, no dizer do cunhado,
media o dinheiro aos alqueires, tinha três navios e duzentos pretos. Em prova
do que, havia já mandado à sobrinha um caixão de caju, pitanga e goiabada,
gulosinas que os velhos apresigavam com broa, pesarosos, ao que parecia, de não
poderem apresigar também um papagaio e um sagui, bichos que distraíam Angélica
do trabalho.
O
casamento apalavrado era notório, e mesmo assim os casquilhos do concelho e os
lavradores solteiros não desistiam de enviar-se à esposa prometida do
brasileiro. Se ela não estivesse ajustada com o tio, dizia o pai, quem na
levava era o Barnabé da botica. Aquilo é que é modo de vida! Com um gigo de
ervas e seis garrafões de água da fonte arranja caroço daquela casta! Anda aí o
escrivão das sisas atrás da rapariga: também não é mau modo de vida, escrivão;
mas eu ladrões cá na minha família não nos admito. O mestre-escola é bom
sujeito e devo-lhe obrigações porque me ensinou a fazer bem ou mal uns
garatujos para não assinar de cruz; e ensinou a rapariga também; mas tanto lhe
faz saber ler como não: o pobre homem não tem tábua sua onde caia, se não for
na cadeia... Andam estes badamecos a rentarem-me à rapariga e não se acabam de
desenganar! Deus traga depressa meu cunhado a ver se ma deixam; que ela, a
respeito de juízo, é até onde pode chegar! Quando algum fidalgote lhe diz
praqui pracolá, a rapariga, moita! Vocês bem sabem que ela não vai a espadeladas
nem festas de ninguém. Romarias é lá uma ano a ano. O seu regalo é ir às festas
de igreja do mosteiro. Isso vai a todas, e raro é o mês que lá não se
confessa...» In Camilo Castelo Branco, A Bruxa do Monte Córdova, 1867, Projecto
Livro Livre, Nº 212, Poeteiro Editor, 2014.
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