Cortesia de wikipedia e jdact
«Os livros não se medem pelos palmos da
lombada ou da capa. Nem as escavações arqueológicas se medem pelos palmos de
metros cúbicos de terra movimentada. O desfecho da intervenção no subsolo da
igreja de São Julião e da sede do Banco de Portugal, em Lisboa, com vista à
adaptação parcial do edifício a Museu do Dinheiro, prova isso mesmo. À partida,
tratava-se de mais uma intervenção arqueológica ditada por imperativos legais,
a realizar num local situado na fronteira difusa da malha urbana medieval, zona
periférica de urbanização tardia e cujas sedimentações históricas estariam
potencialmente mais ligadas às remodelações que a cidade conheceu após o
terramoto de 1755. Os resultados obtidos, todavia, vieram assegurar ao Museu do
Dinheiro do Banco de Portugal um estatuto cimeiro, quer no panorama científico
dos estudos dedicados à Lisboa medieval, quer nos itinerários arqueológicos da
cidade que são parte importante da diferenciação turística de índole cultural
da capital. No Museu do Dinheiro trabalhou-se em segredo. O principal resultado,
a identificação de um troço da muralha ribeirinha construída no reinado do
monarca Dinis I, foi alcançado na campanha de 2010, mas o livro que evidencia a
importância dessa descoberta e a integra nos mais vastos contextos topográficos
e cronológicos da cidade ocorreu apenas mais de quatro anos depois daquele
momento revelador, e sensivelmente um ano após a abertura ao público do Núcleo
de Interpretação da Muralha de D. Dinis (Abril de 2014). Hoje, o que visitante
pode visitar é um lanço de muralha com mais de 30 metros de comprimento, ao
qual se acede descendo pouco mais de um andar, até uma cota que nos parece
levar verdadeiramente ao coração subterrâneo da Baixa de Lisboa. O livro não é apenas dedicado ao troço
preservado da muralha dionisina. Na verdade, o seu autor, o arqueólogo Artur
Rocha, conta várias histórias nesta publicação, mas fá-lo tendo em consideração
o apertado espaço que escavou e os contextos históricos da própria cidade.
Interessou-lhe, sobretudo, compreender os diferentes momentos da evolução de
Lisboa e qual o contributo que os achados da escavação podiam trazer para esse
panorama mais amplo, preocupação bem ilustrada no subtítulo do livro, Fragmentos arqueológicos e evolução
histórica. Por essa razão, o texto não prescinde de contar a própria
história de Lisboa, desde os seus primeiros povoadores até às radicais
alterações do período pombalino, constituindo-se um fluido e coerente discurso
que se situa no âmbito da divulgação, porém sem abandonar as características
próprias de uma edição científica, na qual a problematização de dados é uma
constante. Mas são mais os méritos desta obra. A principal virtude, quanto a
mim, é revelar finalmente um troço da muralha do tempo de Dinis I, obra militar
há muito conhecida através da documentação, sobretudo pelo contrato de 1294,
assente entre o monarca e o concelho de Lisboa, que permitiu a sua edificação,
mas cujo traçado e características construtivas permaneciam ocultos, não
obstante os esforços de Augusto Vieira Silva em reconstituir alguns aspectos
estruturantes. Em rigor, a muralha dionisina era já fisicamente conhecida, mas
não em ambiente científico controlado, como bem esclarece Artur Rocha. Augusto
Vieira Silva havia já noticiado a descoberta de um troço no subsolo de um
edifício na Rua do Comércio, n.ºs 112-114, paralelo à fachada do prédio, mas
foi no Banco de Portugal que se registou a muralha através dos métodos
científicos rigorosos ao serviço da moderna arqueologia. E foi também aqui que
se optou por preservar o muro velho, ignorando-se o que ocorreu em
relação ao lanço identificado em 1939.
O estudo da muralha agora descoberta possibilitou a chegada a outras conclusões relevantes. Por um lado, permitiu caracterizar a técnica construtiva adoptada na edificação medieval, que recorreu ao uso sistemático de pedra miúda unida por abundante argamassa, tendo-se concluído os muros exteriores e interiores com capas de revestimento em argamassa obtidas através de um sistema de cofragem que pareceu algo descuidado. Esta solução não deixa de surpreender, uma vez que são bem conhecidas as fortificações do tempo de Dinis I que recorreram a aparelhos construtivos plenamente isódomos, realizados com silhares de apreciáveis dimensões, exemplarmente talhados e dispostos em fiadas regulares. No entanto, a variedade tipológica das construções militares medievais de Lisboa já tinha sido identificada por Lídia Fernandes, na intervenção que realizou na Escola Secundária Gil Vicente, tendo na altura identificado largos troços de taipa, ainda com vestígios de cofragem. Por outro lado, o trabalho de Artur Rocha permitiu também corrigir ligeiramente o traçado da muralha proposto por Vieira Silva, que idealizou uma progressão da estrutura no sentido Nordeste-Sudoeste, tendo sido agora possível perceber que ela se desenvolvia de Este para Oeste, quase em linha recta, pelo menos no sector agora intervencionado. Apesar dos muitos progressos constantes deste livro, os dados revelados sobre a muralha colocam muitas perguntas à comunidade científica que se dedica a estudar a Lisboa medieval. O troço identificado localiza-se no limite ocidental da cidade, zona de grande expansão entre os séculos XIII e XIV, mas também uma área presumivelmente fortificada ou, pelo menos, dotada de referências verticalizantes de carácter defensivo. São conhecidas as propostas de Augusto Vieira Silva acerca da existência prévia ao amuralhamento do tempo de Dinis I de umas tercenas fortificadas com pelo menos duas torres, a das Tercenas e a das Pombas (uma terceira torre, chamada de Maracote, está documentada apenas para o século XVI, como notou José Vasconcellos Menezes). Este dado é relevante porque a própria muralha devia articular-se com portas de acesso ao campo que cobre a maré (assim chamada a praia entre o rio e o muro dionisino num documento de 1302), mas a escavação não logrou identificar nenhum vão de passagem, nem qualquer das torres propostas por Vieira Silva, pressentindo-se, também por esta via, uma certa simplicidade da estrutura que parece ter correspondência com a própria técnica construtiva». In Paulo Almeida Fernandes, Recensão, A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica, Museu do Dinheiro / Banco de Portugal, 2015, Universidade de Coimbra, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, 2016, ISSN 1646-740X.
O estudo da muralha agora descoberta possibilitou a chegada a outras conclusões relevantes. Por um lado, permitiu caracterizar a técnica construtiva adoptada na edificação medieval, que recorreu ao uso sistemático de pedra miúda unida por abundante argamassa, tendo-se concluído os muros exteriores e interiores com capas de revestimento em argamassa obtidas através de um sistema de cofragem que pareceu algo descuidado. Esta solução não deixa de surpreender, uma vez que são bem conhecidas as fortificações do tempo de Dinis I que recorreram a aparelhos construtivos plenamente isódomos, realizados com silhares de apreciáveis dimensões, exemplarmente talhados e dispostos em fiadas regulares. No entanto, a variedade tipológica das construções militares medievais de Lisboa já tinha sido identificada por Lídia Fernandes, na intervenção que realizou na Escola Secundária Gil Vicente, tendo na altura identificado largos troços de taipa, ainda com vestígios de cofragem. Por outro lado, o trabalho de Artur Rocha permitiu também corrigir ligeiramente o traçado da muralha proposto por Vieira Silva, que idealizou uma progressão da estrutura no sentido Nordeste-Sudoeste, tendo sido agora possível perceber que ela se desenvolvia de Este para Oeste, quase em linha recta, pelo menos no sector agora intervencionado. Apesar dos muitos progressos constantes deste livro, os dados revelados sobre a muralha colocam muitas perguntas à comunidade científica que se dedica a estudar a Lisboa medieval. O troço identificado localiza-se no limite ocidental da cidade, zona de grande expansão entre os séculos XIII e XIV, mas também uma área presumivelmente fortificada ou, pelo menos, dotada de referências verticalizantes de carácter defensivo. São conhecidas as propostas de Augusto Vieira Silva acerca da existência prévia ao amuralhamento do tempo de Dinis I de umas tercenas fortificadas com pelo menos duas torres, a das Tercenas e a das Pombas (uma terceira torre, chamada de Maracote, está documentada apenas para o século XVI, como notou José Vasconcellos Menezes). Este dado é relevante porque a própria muralha devia articular-se com portas de acesso ao campo que cobre a maré (assim chamada a praia entre o rio e o muro dionisino num documento de 1302), mas a escavação não logrou identificar nenhum vão de passagem, nem qualquer das torres propostas por Vieira Silva, pressentindo-se, também por esta via, uma certa simplicidade da estrutura que parece ter correspondência com a própria técnica construtiva». In Paulo Almeida Fernandes, Recensão, A Muralha de Dinis I e a Cidade de Lisboa. Fragmentos Arqueológicos e a Evolução Histórica, Museu do Dinheiro / Banco de Portugal, 2015, Universidade de Coimbra, IEM, Revista Medievalista, Nº 20, 2016, ISSN 1646-740X.
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IEM/FCSH/NOVA/FCT/JDACT