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e wikipedia
«(…)
Tantas vezes te pedi: diz-me que me amas, diz só uma vez. Mesmo que seja
mentira. Diz-me. Só para eu guardar o som da tua voz a dizer essa palavra.
Tinha vinte e três anos, e tu tinhas vinte e nove. Depois dos trinta, deixei de
te fazer declarações de amor. Julgava-me madura, ardilosa, pensava que bastava
prescindir das palavras para não te perder. Mas não eram as minhas palavras que
te perdiam. Tu eras um pintor e já não ias ser pintor. Lias nos meus olhos que
já não ias ser pintor. Só com o tempo foste lendo o resto, o resto dos restos
que era tudo: que eu sabia que tu eras pintor. O artista do meu corpo secreto,
uivante, um tecido de fios de luz que só os teus dedos acendiam, e rios,
rochas, relvados amaciados pela tua língua, uma asa à medida do teu voo, uma
casa em que tu moravas de todas as maneiras. Falavas pouco, quase nada, por
isso me lembro tanto das tuas palavras todas: este apartamento já conheço, podemos
passar ao outro?, perguntaste. Se eu contasse às minhas amigas que as tuas
palavras eram estas, apenas estas, sussurradas com um sorriso trocista de
timidez, elas fariam troça de mim. De nós. Por isso contei apenas o essencial:
que tu me fazias sentir bela. Que conseguiste que eu me sentisse bela a vida
inteira.
De
cada vez que o espelho me anunciava mais uma marca do tempo, mais uma prega na
carne, eu acariciava-a com os teus dedos, sentindo o prazer que tu sentirias,
ao descobrires novas rotas no mapa do meu corpo. No início, dizias-me também às
vezes: és tão nova. Não era um elogio; havia um tom de decepção ou desencontro
nesse teu comentário. E eu tinha pressa de encarquilhar, de envelhecer até
ficar parecida com as mulheres que amaras antes de mim. Nunca me elogiaste. Encontrávamo-nos
por causa do Partido, levavas-me para tua casa, com os pretextos mais nevoentos,
um debate político na televisão, o ofício que ias entregar no ministério, e
quando fechavas a porta começavas a beijar-me. As pálpebras, o lóbulo da
orelha, a curva do pescoço ou o espaço entre os dedos. Só sexo. Nunca começavas
como nos filmes. Também nunca perguntaste essas patetices deprimentes que as
pessoas copiam dos filmes: foi bom? Saí do consultório e pensei que tinha de te
encontrar. Não sabia como. Há pelo menos vinte anos que não tenho o teu
telefone. Um dia desisti de ti. Tive medo de deixar de fazer parte do mundo, de
continuar sozinha contigo, só sexo. Conheci um homem que seria indigno trair,
um homem que me seduziu porque era o oposto de ti. E decidi ser feliz. Sei
vagamente onde moras, ou onde moravas, há cerca de cinco anos cruzei-me com a
tua mulher numa festa e percebi que ela dizia: desde o meu divórcio. Claro que
podia estar a falar do seu primeiro casamento. Mas como mudou de assunto assim
que me viu, pareceu-me que só podia estar a falar de ti. Nunca fomos
apresentadas, eu e a tua mulher, ou ex-mulher. Mas eu sei que ela sabe muito de
mim. Os olhos da mulher de um homem que nos ama são indiscretos. Também nos
olhos dela encontrei o teu amor por mim. Amor não é a palavra exacta. Amor é o
que eu sinto pelo meu neto, pelos meus filhos, pelo pai deles, até pelo meu
cão. Pobre cão. Se calhar vai deixar de comer quando eu morrer. Vai ficar
sentado à porta, esperando por mim até à morte. Os cães não conhecem a morte,
por isso podem morrer de amor. Ficam à espera até ao fim, não se deixam
consolar. Tu tens alma de cão vadio, sabes amar sem desconsolo. Se fosses
morrer daqui a dois ou três meses, como eu, saberias fazer-te encontrado
comigo? Talvez soubesses. Da última vez que te vi, há nove anos, no cinema,
aproximei-me para te pedir um cigarro e disse-te, mesmo antes de ti: que
disparate; deixaste de fumar há uma semana, bem sei, desculpa. Como é que
sabes?, perguntaste-me, atónito. Sorri, encolhi os ombros, não cheguei a
responder-te. Como é que eu sabia? Ora, como sei tudo de ti. Através dos
sonhos. Agora sento-me no café em frente ao ministério, à espera que tu saias e
venhas ter comigo. O ministério mudou de nome, mas de certeza que tu ainda lá
trabalhas. Sempre foste um homem de hábitos e nunca cultivaste grandes
ambições. Peço uma bica e começo a fazer contas. Oxalá a tua ambição tenha sido
pelo menos suficiente para te afastar da pré-reforma. Também não te imagino em
casa, a fazer palavras cruzadas o dia inteiro. Do Partido desististe muito
antes da moda da renovação.
Cinco
e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro,
falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos
crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo, e dizes: tens outra
vez o cabelo muito comprido. Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como me vai
ser útil esse teu elogio, nos meses que faltam. Comprarei um cabelo igual para
tu veres. Neste, ainda o meu, quero que mexas. Prendo-te a mão ao meu cabelo.
Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja, prometes uma vez mais que um dia me
ensinarás a gostar de cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se Cinco e
trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro,
falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos
crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo, e dizes: «Tens outra
vez o cabelo muito comprido.» Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como me vai
ser útil esse teu elogio, nos meses que faltam. Comprarei um cabelo igual para
tu veres. Neste, ainda o meu, quero que mexas. Prendo-te a mão ao meu cabelo.
Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja, prometes uma vez mais que um dia
me ensinarás a gostar de cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se por
acaso não quero ir até lá a casa ver umas fotografias dos tempos antigos.
Fechas a porta e começas a beijar-me, primeiro os olhos, depois o lóbulo da
orelha, depois o pescoço, enquanto os teus dedos me abrem a camisa e me
procuram os seios. Beijamo-nos de olhos abertos, como sempre, e é de olhos
abertos que procuro cada uma das novidades do teu corpo, os sítios onde a tua
pele dobra, o cheiro agora mais adocicado do teu sexo. Entramos um no outro de
olhos abertos, como se mergulhássemos num mar de silêncio e fogo escuro. A meio
da noite peço-te que me deixes ficar contigo um mês, só um mês, prometo. Posso?.
Não me respondes, claro. A não ser que os beijos sejam uma resposta, e eu
preciso de acreditar que sim. Preciso dessa vida verdadeira que escondi debaixo
da tua pele, antes que o cabelo me caia, antes que comecem os enjoos e as
dores, antes que o meu corpo seja tomado pelo cheiro miserável da doença.
Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver,
só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo». In
Inês Pedrosa, Fica Comigo esta Noite, Publicações dom Quixote, 2003, ISBN 978-972-202-601-7.
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