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Quando Domitila nasceu, em 1797, São Paulo jazia sonolenta no topo da colina do
Colégio fundado pelos jesuítas no século XVI, embalada pelo gemer característico
do carro de boi. A outrora vila que abrigara a raça de gigantes, os
bandeirantes, havia se transformado numa cidade caipira, passagem de bens,
sobrevivendo à custa de impostos sobre os géneros que transitavam pelo seu entroncamento
em direcção a Rio, Santos, Minas e sul do Brasil. Apesar de centro
administrativo da capitania, estava longe de parecer que se transformaria na
metrópole actual. A região mais densamente povoada, que conhecemos hoje como
bairro da Sé, tinha pouco mais de cinco mil habitantes. Se somados aos das
demais freguesias que compunham a cidade, como São Bernardo, Guarulhos, Cotia,
entre outras, chegariam a, aproximadamente, 20 mil pessoas, o suficiente para
ocupar um quarto do estádio do Maracanã. A área urbana era confinada entre os
rios Tamanduateí, de um lado da colina, e Anhangabaú, do outro. As construções
que delimitavam a região central e o início das chácaras eram os conventos do
Carmo, São Francisco e São Bento. Ao longe, além dos rios, era possível avistar
trechos de mata nativa, de onde sobressaíam araucárias e palmeiras. O término
das obras da Calçada do Lorena, nova via moderna, pavimentada, que ligava a
vila de São Paulo e o porto de Santos, tinha apenas cinco anos em 1797. O
caminho sofria, do mesmo modo como os anteriores, com as fortes chuvas da serra
do Mar e com deslizamentos; porém era mais rápido e eficiente que o antigo Caminho
do Padre José de Anchieta. Por essa estrada desciam os principais produtos de
exportação da capitania: açúcar, carne-seca, aguardente, entre outros, a
riqueza que viria com o café ainda estava distante; serra acima subiam os
produtos importados para abastecer a cidade, como sal, vinho português, vidros,
ferragens e tecidos. As cargas eram transportadas no lombo de mulas conduzidas
pelos tropeiros, homens rudes cobertos por ponchos e chapéus de couro de abas
largas e desabadas sobre o rosto. Possuíam, em sua maioria, pouco além da roupa
do corpo. São Paulo, nessa ocasião, além de trilhas, travessas e becos, contava
com poucas ruas mal calçadas por pedra bruta, como Direita, São Bento, Carmo, Quitanda,
Cadeia, das Casinhas, Boa Vista, São Gonçalo, Pelourinho, Rosário e da Freira.
O calçamento bruto acabou adestrando a mulher paulista a um andar faceiro,
registado pelos viajantes. Na verdade, o passo leve e seguro era para evitar
que torcessem os delicados tornozelos nas pedras.
Os
raros viajantes que por essas ruas transitaram puderam admirar a limpeza que
imperava na cidade. O paulista utilizava fossas negras, não se servia dos tigres,
escravos que esvaziavam barris de excrementos no mar, como no Rio de Janeiro e
em Santos. Os escravos eram pouco mais de 24% da população, número baixo se
comparado ao de cidades grandes da época, como Rio e Bahia. Os viajantes, se
estrangeiros, eram recebidos por crianças em algazarra, interessadas em saber
se eles tinham o mesmo número de dedos que os habitantes da terra. Raras eram
as casas de pedras ou tijolos. Os prédios eram construídos pelo método de taipa
de pilão, onde o barro e outros elementos eram socados dentro de moldes de
madeira com a espessura que a parede deveria ter. As construções, habitualmente
de dois andares, eram dotadas de balcões, por onde o paulista tomava a fresca
protegido dos olhares curiosos por detrás das rótulas e dos muxarabis, peças
treliçadas que permitiam preservar a intimidade da residência. As casas eram
pintadas geralmente de branco, rosa ou amarelo. Por dentro, a casa do paulista
era severa, sem a elegância que o viajante poderia encontrar em regiões do Rio,
Minas, Bahia, Pernambuco ou Maranhão. Vetustas cadeiras coloniais eram
colocadas numa fileira, geralmente ocupada pelos homens, enquanto as mulheres,
sentadas em sofás de palhinha, faziam trabalhos de agulha à luz de candeeiros
de latão abastecido com óleo de rícino, mas somente se não houvesse visitas,
pois, normalmente, elas não frequentavam a mesa diante de hóspedes, ou a sala
na ocasião em que forasteiros pediam pouso. Era comum encontrar à mesa paulista
feijão, toucinho, farinha e carne de porco, além de linguiça defumada e a
onipresente couve, que seria bastante amaldiçoada pelo poeta Álvares Azevedo
anos mais tarde ao vê-la até no café da manhã. Esses ingredientes eram tão
comuns que são os principais de um prato conhecido até hoje como Virado à
Paulista. As frutas, como a laranja, eram acrescentadas aos pratos
salgados, como o próprio virado. A mistura agridoce era uma constante na mesa
de São Paulo, onde a abóbora acompanhava a carne de porco e a polivalente
banana, frita com canela e açúcar, virava sobremesa; crua, misturavam com o
feijão». In Paulo M. Rezzutti, Domitila, 2012, Geração Editorial, São Paulo,
2013, ISBN 978-853-940-089-4.
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