sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A Primeira Mulher de Camilo. Silêncio Injustificado. Alberto Pimentel. «O boticário, que seguia as partes do morgado, lia a satyra á populaça, que ria ás escancaras»

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«Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se?» In Camilo Castelo Branco, A Enjeitada
  
De acordo com o original 

«(…) Feita a admoestação e lidos os poetas, a imagem de Elmena (pseudónimo com que arcadicamente foi designada por Camilo uma sobrinha de certo vigário transmontano) tornou a apparecer a Camillo. Porque o seu espirito começava a precisar de um ideal feminino, que não podia ser a pobre camponeza já possuída como um livro que, depois de lido, nos saciou a curiosidade. Vivi daquella hora em diante, diz elle, mais clandestinamente com Apollo, já versejando por conta de Elmena, já versejando aos passarinhos que cantavam nos soutos e olivaes visinhos da janella do meu pobre quarto (ao anoitecer da vida). Comtudo, as cautelas adoptadas por Camilo não eram tão rigorosas, que o segredo das suas composições métricas fosse apenas conhecido dos passarinhos. Os condiscípulos de latim apreciavam-lhe a facilidade de improvisação, e a fama de poeta espalhava-se desde Friume até á Granja Velha. Foi justamente esta prenda litteraria que levou Camillo a abandonar precipitadamente o concelho de Ribeira de Pena. Elle mesmo se constituiu chronista dessa forçada emigração: n’aquella freguezia andavam ás más dois irmãos de fidalga prosápia, á conta do casamento desigual que um d'elles intentava fazer, contra a vontade do mais velho. Por parte dos sequazes d’este me foram pedidos uns versos, em que a noiva menos fidalga e o apaixonado mancebo fossem chanceados á conta de me não lembra que antecedencias mui ageitadas á galhofa métrica. Deu-me soberbas uma incumbência deste género! Poeta, e de mais a mais requestado para intervir com minha opinião em casamento tão fallado nas vinte aldeias circumpostas! Escrevi uma folha de papel almaço em quadras, que os interessados na publicidade affixaram na porta da egreja, momentos antes da missa das onze horas. O boticário, que seguia as partes do morgado, lia a satyra á populaça, que ria ás escancaras.
E eu de lado a revêr-me na obra, e a saborear-me nas alvares cascalhadas do gentio! Por um cabello que não fui então martyr do génio! A victima crucificada na porta da egreja não era das que dizem: Senhor, perdoai ao poeta, que não sabe as asneiras que diz! Apenas lhe constou que era eu o instrumento da vingança de seu irmão, preferiu quebrar o instrumento, e deixar não só o fidalgo, que também o boticário em paz. Poeta era eu só naquelle quadrado de dez léguas: avisadamente conjecturou o homem que, esganando a musa que o verberara, abafaria aquelle respiraculo da detracção inimiga. O padre mestre avisou-me horas antes da espera e da sepultura. Fugi com o magnum léxicon debaixo do braço, e com os ossos direitos que aquella terra ingrata me queria comer. Abandonando Ribeira de Pena precipitadamente, como quem foge a um perigo certo. Camillo deixou alli memoria de duas creancices: o casamento e a satyra. Que admira, se elle era uma creança de dezeseis anos?
Sob a protecção do sogro, veio para Lisboa, onde tornaria a ver Amélia ou Celestina, a qual se mostraria indifferente á recordação do galanteio infantil que ambos haviam entretido. Lisboa seria a terra escolhida intencionalmente, talvez por conselho de Sebastião Santos, para que fosse maior a distancia interposta ao auctor da satyra e ao seu feroz inimigo de Ribeira de Pena. Mas Camillo não estava habituado á vida da capital, que lhe fazia saudades da vida dos campos e dos passarinhos dos soutos e olivaes. Quando julgou mais acalmada a tempestade que a satyra desencadeara, foi para o Porto a fim de estudar preparatórios, porque o sogro não tinha desistido ainda de formal-o em medicina. De repente, num impeto de mocidade irrequieta, a que a saudade da infância não seria de todo estranha, Camillo emancipou-se da tutella de Sebastião Santos e acoitou-se em Villa Real em casa da tia Rita». In Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT