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Lusbuna.
Verão de 1142
«(…)
Um monge também o faz. Encolhido num convento? Os monges não dormem e rezam o
tempo todo, como se diz por aí. Quem haveria de tratar dos doentes e dos pobres
e alojar os viajantes sem posses? O mais velho não tinha contado com a
resistência do rapaz. Ele próprio estava tão ansioso que lhe custara esperar
até ao fim do jejum do Advento, a 6 de Janeiro, dia da Epifania, para vir ao
convento de Deutz. Sempre pensara que Johann receberia a novidade exultante. Não
estás bom da cabeça, se tencionas passar a tua vida aqui metido! Pelo menos, é
seguro. Konrad agarrou-o pelo hábito e vociferou: serás tu, o meu próprio
irmão, um cobarde? Não é nada disso. Eu quero ser copista e ilustrador. O mais
velho largou-o espantado: o que é que tu queres ser? Adoro trabalhar no
scriptorium, apesar de este não ser aquecido. Mas eu lá não dou conta nem do
frio, nem do passar do tempo. Lemos e copiamos livros bonitos, sabias? E
aprendemos muito. Além disso, o irmão Bonifácio diz que tenho um talento
especial para ilustrar. E aprendo o latim tão depressa, que já me aborrece, por
isso comecei também com o grego. Um fidalgo deve ser letrado quanto baste,
também eu acho que foi bom ter aprendido a ler e a escrever alguma coisa. Fica
bem assinar os documentos pelo próprio punho. Baixou a voz: mas há coisas que a
um monge são proibidas e que tu deverias experimentar. O rapazito corou e
titubeou: achas? Claro. Não me digas que não pensas em mulheres! Johann levou o
indicador aos lábios, aconselhando o irmão a falar ainda mais baixo, e
cochichou: lá pensar, penso. Mas os irmãos dizem que não devemos ceder à
tentação da carne... Ora, deixa-os falar! Devias conhecer a vida antes de te
decidires. Depois dos votos sagrados não se pode voltar atrás. Lá isso é
verdade. Nas cruzadas esperam-nos aventura, riqueza e glória. Se tu depois
ainda achares que te deves tornar monge, não terei nada a opor. Depois de uma
curta reflexão, o rapaz retorquiu: combinado! Assim é que tu me agradas. E
quando nos juntamos às tropas do nosso rei? Konrad respirou fundo, antes de
responder: não o faremos. Porquê? Não temos cavalos, teríamos que fazer a
viagem a pé, meses a fio. E, apesar de atravessarmos terras cristãs, há sempre
o perigo de se gerarem conflitos, como da primeira vez. É verdade. Quando a
fome atacava os cruzados, eles devastavam campos e aldeias. E não esqueçamos a
fadiga e as doenças. Muitos peregrinos morrem antes mesmo de avistar a Terra
Santa. Konrad escondia, porém, o facto de que, indo sozinho, se juntaria às
tropas do rei. Receava, contudo, que Johann não fosse suficientemente
resistente. E afinal havia outra possibilidade: ouvi dizer que muitos cruzados
viajarão de barco, ao longo da costa hispânica, até ao mar a que chamam
Mediterrâneo. É mesmo? Parece que em terras hispânicas há um rei descendente da
Casa de Borgonha, como o próprio Bernardo Claraval. Por isso, o prestigiado
monge incumbiu um sobrinho do falecido duque da Baixa-Lotaríngia, de seu nome
Arnulf Aarschot, de se juntar a cruzados ingleses, que preferem a rota marítima.
Parece que esse rei precisa de ajuda para conquistar uma grande cidade, que se
encontra nas mãos dos infiéis. Chama-se Lasbo... não, Lisba... Lusbuna? É isso
mesmo. Como é que sabes? Não te disse que aprendia muito nos livros? Além
disso, aqui no convento fala-se muito sobre a Reconquista hispânica. Há uns
cinquenta anos, o papa Urbano II até a reconheceu como a cruzada do ocidente. Seja
como for. Espero que não fiquemos muito tempo por lá. O nosso objectivo é a
Terra Santa. Eu quero combater ao lado do nosso rei. Esse português que dê
conta sozinho da sua Rico... Raco... Reconquista. Quero lá saber. Ele que lute
sozinho. Depois de um curto silêncio, Johann disse: tu tens razão. Vamos viver
muitas aventuras. E na nau vais ter mais tempo para te treinares nas artes de
combater. Ainda tens as espadas, a cota de malha e... Claro, e construí dois
escudos. Estou agora a trabalhar num capelo para ti, mas para uma cota de malha
não tenho tempo. Vou-te comprar um gibão, aquela vestimenta almofadada, que... Eu
sei o que é um gibão! Tanto melhor. E até partirmos, aproveitaremos bem o
tempo. Treinarás no meu grupo. Eu peço permissão ao abade. Como tu vais ser um
soldado de Cristo, penso que ele não levantará objecções. Com certeza que não. Prepara-te!
Na Primavera faremos parte da armada de Arnulf Aarschot!» In Cristina Torrão, A Cruz de
Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.
Cortesia de
Ésquilo/JDACT