quarta-feira, 5 de outubro de 2016

A Paixão do imperador. Mary del Priore. «Luísa e Domingos se misturavam às crianças livres e escravas do engenho para brincar. Pião e papagaio entre os meninos. Danças de roda, vestir o menino Jesus e baptizados de bonecas, para as meninas»

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«(…) A primeira infância transcorreu tranquila, entre o jardim do sobrado e algumas longas temporadas nos engenhos, que eram dois: São Pedro e São João. Ficavam no Recôncavo de Santo Amaro, ao longo do rio Subaé, distante cerca de 72 quilómetros da capital. A família ia para lá em lombo de mula, a cavalo, ou em carro de boi, por péssimas estradas. As mulheres e crianças recostavam-se em almofadões de chita no fundo do coche, ouvindo os gemidos das rodas que rangiam de cansaço. Como outros engenhos, São João e São Pedro eram reconhecidos pelas manchas verdes que pela manhã se enchiam dos sons de cigarras e pássaros: os canaviais. Ao longo dos regueiros que abasteciam a casa, as borácicas, com suas flores amarelas, alegravam as margens. São João se alojava num pequeno vale, cercado por mata densa. Um renque de vinte coqueiros finos marcava a vista da casa principal. Sua única curiosidade era o alpendre com nobres colunas toscanas, que fazia as vezes de varanda. À direita, brilhava um grande açude onde as vacas bebiam água. A família ocupava um núcleo com uma sala central, e diversas alcovas ao seu redor. De um lado da entrada, ficava a capela que trazia à frente a tabuleta Viva Nossa Senhora das Graças, devoção dos Borges Barros. Do outro, ficava o quarto de arreios, destinado aos hóspedes. Num quarto contíguo à sala, Domingos recebia empregados e amigos. Recebia também cativos fugidos ou maltratados pelos vizinhos, a quem dava protecção. Foi padrinho de muito escravo com marcas de suplícios e se colocava à disposição para facilitar as negociações com os senhores antes que ele optasse por tirar cipó. Ou seja, fugir para o mato.
Da janela ou da varanda de engenhos como este, Luísa cresceu vendo o sol se espalhar sobre os partidos, esquentando as folhas de cana ainda pingando de orvalho. Dona Maria do Carmo, a poderosa senhora, dava o santo e a senha dentro da casa. Mulheres mais jovens e gentis, escravas ou não, provocavam logo seu mau humor e esconjuros. Mesmo jovem, já se sentia venerável por ter de dar a bênção a tanta gente: escravos, crianças, vizinhos. Essa necessidade de tanto abençoar a envelhecia e lhe dava a consciência de sua precoce respeitabilidade. Sabia que tinha que ser modelo de pureza, a quem interessava somente o bom governo da casa, a ordem e a economia. Evitava desperdícios, cuidava para que os escravos fossem bem alimentados e vestidos e olhava as crianças quando as mães recebiam serviços muito distantes. Zelava, pessoalmente, para que nada faltasse a Domingos e Luísa. Muito religiosa, dona Maria do Carmo tinha empenho em que bem se ensinasse os meninos a rezar. As mucamas, as rapariguinhas viviam também na casa-grande sob suas vistas, ocupadas cosendo roupas grossas e sacos para o açúcar. À volta da mesa de costura, a senhora aproveitava para lhes contar histórias extraídas da Bíblia Sagrada, que elas ouviam com resignação. Maria do Carmo presidia também à distribuição das rações. Cabia a ela a missão de controlar as refeições do marido e dos trabalhadores; cuidar do bom funcionamento da cozinha e da dispensa; manter os trajes engomados, as camas macias e receitar remédios caseiros.
Luísa e Domingos se misturavam às crianças livres e escravas do engenho para brincar. Pião e papagaio entre os meninos. Danças de roda, vestir o menino Jesus e baptizados de bonecas, para as meninas. O pequeno Domingos aprendia a ter pontaria no bodoque ou a assobiar como os pássaros. Nos terreiros e pomares, as crianças subiam em árvores para comer fruta verde, brincavam de soldado e faziam teatrinho. A molecada tomava até três banhos de rio por dia. Caindo a tarde, a família liderada por Domingos se reunia para observar o movimento do engenho: a chegada do gado que, deixando as pastagens, se recolhia aos currais, e das últimas viagens de cana ou de mantimentos provindos da roça; a contagem e a revista dos escravos; a chegada de tropas de cavalos carregados de canastras. Luísa e seu irmão tudo acompanhavam da varanda. Descia a noite sob a melodia simples e monótona de versinhos, canto da gente da senzala. Na sala, jogavam-se prendas, o queijo do reino sobre a mesa. Uma escrava idosa vinha, então, colocar sobre a canastra a lamparina, repetindo as palavras usuais: louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Sentavam-se todos à volta da mesa e começava a conversa animada. Nela, os assuntos predilectos eram a lavoura, as chuvas e a estiagem. A política era discutida depois da leitura do jornal Idade d'Ouro do Brazil». In Mary del Priore, Condessa de Barral, A Paixão do imperador, Editora Objetiva, 2008, ISBN 978-857-302-923-9.

Cortesia de Objetiva/JDACT