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4 de
Julho de 2005. Pic de Soularac. Montes Sabarthès. SW da França
«(…)
É a primeira vez que Alice visita os Pirenéus, embora se sinta praticamente em
casa ali. Já lhe disseram que, no Inverno, os cumes pontiagudos dos Montes
Sabarthès ficam cobertos de neve. Na Primavera, delicadas flores cor-de-rosa,
lilases e brancas surgem de seus esconderijos nos enormes rochedos. No início
do Verão, os pastos ficam verdes e salpicados de botões de ouro. Agora, porém,
o sol achata a Terra, subjugando-a, transformando os verdes em marrom. É um
lugar bonito, pensa ela, mas de certa forma inóspito. Um lugar de segredos, que
já viu coisas demais e escondeu coisas demais para poder estar em paz consigo
mesmo. Na sede do acampamento, mais abaixo na encosta, Alice pode ver os
colegas em pé sob o grande toldo de lona. Com esforço, consegue distinguir
Shelagh na roupa preta que a caracteriza. Fica surpresa que já tenham parado. E
cedo demais para um intervalo, mas a verdade é que a equipa toda está meio
desanimada. Cavar e raspar, catalogar e anotar, tudo isso é na maior parte do
tempo um trabalho árduo e monótono, e até agora eles desenterraram poucas
coisas que valham a pena a ponto de justificar seus esforços. Encontraram
alguns fragmentos de antigos jarros e vasilhas da Alta Idade Média e uma ou
duas pontas de lança do final do século XII ou início do XIII, mas certamente
não acharam nenhum sinal do núcleo de povoamento paleolítico que é o foco da
escavação. Alice sente-se tentada a descer para juntar-se aos amigos e colegas,
e refazer seu curativo. O corte está ardendo, e suas batatas da perna estão
doloridas de tanto ficar de cócoras. Os músculos de seus ombros estão tensos.
Mas ela sabe que, se parar agora, perderá o pique. Se tudo der certo, sua sorte
pode estar prestes a mudar. Mais cedo, ela reparou em alguma coisa cintilando
debaixo de uma pedra grande, encostada na lateral da montanha, arrumada e
posicionada como se houvesse sido posta ali pela mão de um gigante. Embora
ainda não consiga ver que objecto é aquele, nem sequer determinar o seu
tamanho, passou a manhã inteira cavando e acha que não vai demorar muito para
conseguir alcançá-lo. Ela sabe que deveria chamar alguém. Ou pelo menos falar
com Shelagh, sua melhor amiga, vice-directora da escavação. Alice não tem
formação de arqueóloga; é só uma voluntária dedicando parte de suas férias de
verão a alguma ocupação útil. Mas aquele é o seu último dia completo na
escavação, e ela quer provar o seu valor. Se descer agora até à sede da
escavação e admitir que pensa ter descoberto alguma coisa, todo mundo vai
querer participar, e não vai ser mais a sua descoberta. Nos dias e semanas que
estão por vir, Alice vai se lembrar desse instante. Vai lembrar-se da qualidade
da luz, do gosto metálico de sangue e poeira em sua boca, e vai se perguntar
como as coisas poderiam ter sido diferentes se ela tivesse resolvido descer, e
não ficar. Se tivesse seguido as regras. Ela sorve a última gota de água da
garrafa e a joga dentro da mochila. Durante uma ou duas horas depois disso,
enquanto o sol vai ficando mais alto no céu e a temperatura vai subindo, Alice
continua a trabalhar. Os únicos barulhos são o raspar do metal na pedra, o
zumbido dos insectos e o ronco ocasional de um pequeno avião ao longe. Ela pode
sentir gotas de suor brotando acima de seu lábio superior e entre seus seios,
mas continua até que, finalmente, o vão debaixo da pedra fica grande o
suficiente para ela poder pôr a mão lá dentro. Alice ajoelha-se no chão e
encosta a face e o ombro na pedra para se apoiar. Então, com um pequeno
estremecimento de ansiedade, insere os dedos bem no fundo da terra escura e
cega. Percebe imediatamente que o seu palpite estava certo e que encontrou
alguma coisa importante. O objecto tem uma textura lisa e escorregadia; parece
feito de metal e não de pedra. Empunhando-o com firmeza e dizendo a si mesma
para moderar as próprias expectativas, vai trazendo-o muito devagar até à luz.
A terra parece estremecer, sem querer entregar seu tesouro. O cheiro forte e
pungente de terra húmida invade o seu nariz e sua garganta, embora ela mal
perceba. Já está perdida no passado, fascinada pelo pedaço de história que
segura na palma das mãos. É uma fivela pesada e redonda, manchada de pontinhos
pretos e verdes devido à idade e ao longo tempo debaixo da terra. Alice a
esfrega com os dedos e sorri quando os detalhes de prata e cobre começam a se
revelar debaixo da sujeira. À primeira vista, também parece ser medieval, o
tipo de fivela usado para fechar um manto ou uma túnica. Ela já viu alguma
coisa parecida antes». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações
dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.
Cortesia de
PdomQuixote/JDACT