domingo, 30 de outubro de 2016

A Profecia de Istambul. Alberto S Santos. «Maria puxou para si o esposo, encostando-se, ambos, a uma mesa, peito contra peito…»

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O banquete de Adrianópolis. Março de 1305. Constantinopla e Adrianópolis
«Antiga cidade da Trácia, actual Edirne, na Turquia europeia. Em 1361, 56 anos depois destes factos, Murad I conquistou-a aos cristãos bizantinos, transformando-a, então, em capital do Império Otomano.
O céu vermelho e tardio de Constantinopla, pintalgado por um bando de nervosos corvos pretos, que crocitavam com o vigor dos infernos, era a abóbada com que o cosmos cobria Roger de Flor e Maria da Bulgária, na despedida. Nunca pensei que amaria tanto um homem como tu! Maria alisava, com carinho, os cabelos negros e compridos do marido, afagados pela brisa que soprava o perfume primaveril do Bósforo. A jovem princesa casara com o comandante da Companhia dos Almogávares [do árabe al-mogavar, o que faz algaras ou corridas; feros guerreiros cristãos de fronteira que combateram os muçulmanos na Reconquista peninsular e, quando esta terminou, fora da Península Ibérica; a fama da Companhia de Almogávares aragoneses-catalães-valencianos estendeu-se até ao Oriente (Império Bizantino), onde foram protagonistas de uma epopeia sem precedentes, que durou entre 1302 e 1388; em permanente inferioridade numérica, alcançaram vitórias assombrosas sobre os exércitos turcos] por imposição do tio, o imperador bizantino Andrónico II Paleólogo. O que começara por ser uma condição, entre outras contratadas, para que ali viesse correr com os turcos, que metiam ferro e fogo nas cidades de fronteira, transformara-se em cúmplice e deleitada afeição. Meu Megas Duox (o quarto cargo em importância depois do próprio imperador dentro da alta hierarquia político-militar no Império Bizantino), não vás para Adrianópolis! Ouve o que te diz Berenguer: ele não confia em Miguel, e eu tenho um mau pressentimento... Roger acariciou-lhe com ternura a barriga crescida, onde se agasalhava o rebento já com mais de três meses de gestação, e beijou, meigo e carinhoso, a testa suada da esposa. A tensão e o temor emergiram-lhe, líquidos, à alva pele. Esta criança há de ser muito importante...! Muito importante, Maria...! Eu sei, meu amo. Haverá de ser baptizada segundo o rito romano! Atrás de um olhar triste, Maria lembrava-se que nascera ortodoxa, filha de Irene, a irmã do imperador, e do destronado João III Asen da Bulgária. Contudo, depois do casamento forçado com o católico Roger de Flor, convertera-se em segredo à religião do marido, uma prenda por tantos afectos. Toma cuidado, muito cuidado; sobretudo com os alanos. Diz-se que conjuram contra ti..., e, agora que te conheci, não quero mais perder-te..., nunca mais! O homem que chegara da Sicília para defender os bizantinos e aterrorizar os turcos era filho de Ricardo de Flor, falcoeiro do imperador romano-germânico Frederico II Hohenstaufen e de uma jovem de Brindisi, cidade da península italiana, onde nasceu e cresceu até aos oito anos. Morto o pai, caiu a família em desgraça. Roger foi, então, levado, com a bênção da mãe, por um barco templário, ao tempo fundeado no porto da cidade. E o meu primo Miguel..., esse tem tanta inveja e tanto medo de ti, meu esposo!..., avisou, com a face encostada ao peito moreno, e envolvida por uns braços musculados, habituados a tantas invictas lutas. E cobiça tudo o que te diz respeito... Eu sei disso, Maria. Mas eles sabem que eu sei defender-me... Roger compreendia a aflição da esposa. Mas, até àquele dia, transportara permanentemente consigo a intensa energia de um ente sobre-humano que conheceu as maiores potestades e as mais profundas misérias. Depois da derrota cristã, em S. João do Acre, o último bastião das conquistas cruzadas, Roger de Flor dirigiu-se para a Sicília, onde ajudou os reis aragoneses a libertarem-se da Casa de Anjou. Feito comandante da Companhia dos Almogávares, foi chamado a Bizâncio para ajudar o imperador Andrónico a rechaçar a perigosa ameaça turca que mordia os calcanhares da Nova Roma (Constantinopla, para além de Bizâncio e, mais tarde, Istambul, foi conhecida por Nova Roma; o bispo de Constantinopla tem a primazia de honra imediatamente depois do bispo de Roma, pois Constantinopla é a Nova Roma, segundo o Cânone III do Concílio de Constantinopla, do ano 381). À frente das milícias almogávares, derrotou e aniquilou, durante cerca de três anos, todos os exércitos turcos que lhe apareceram pela frente. As batalhas do Cabo Artaqui, de Aulax e do Monte Tauro tornaram Roger de Flor um mito vivo, quando, sempre com menor número de tropas, destruiu os inimigos e semeou o terror no seio dos estandartes do Islão. Mas ninguém conhecia o seu segredo... Ainda por cima, não te esqueças que os brutos mercenários alanos têm os poderosos e privilegiados genoveses como aliados... Maria puxou para si o esposo, encostando-se, ambos, a uma mesa, peito contra peito. E até o próprio Patriarca os protege! Ai, Roger, não me imagino agora sem ti...! Um olhar ternurento e suplicante cingiu Roger de Flor àquela que desposara». In Alberto S. Santos, A Profecia de Istambul, Porto Editora, 2010, ISBN 978-972-004-103-6.
Cortesia de PEditora/JDACT