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A representação da Rua Nova dos Mercadores, todavia, não terá pretendido ser um
retrato fiel do espaço a que alude já que os edifícios, fugindo ao plano
linear, conformam uma ampla praça em U, ou, de forma mais precisa, um terreiro,
cujo especial alongamento perspéctico foi já cabalmente explicado por Joaquim
Caetano, como fazendo parte da solução encontrada por Gregório Lopes para
corrigir os efeitos da forma enviesada como, no corredor estreito e curvo da
Charola, o observador acedia ao quadro. A composição do Martírio de S.
Sebastião seria assim o resultado da utilização livre de um conjunto de
referências, algumas longínquas, outras coevas e familiares ao pintor, no que
não seria, aliás, um recurso invulgar na obra de Gregório Lopes, como foi
sublinhado por Joaquim Caetano ou Paulo Pereira: na Degolação de S. João
Baptista, de cerca de 1536, fica bem patente a colagem de referências várias: a
igreja do Santo Sepulcro, na sua iconografia genérica de já longa tradição,
planta centrada, corpo superior rasgado por duas janelas, surge contaminada por
dois edifícios portugueses de manifesto impacto à época: a Galeria do Paço da
Ribeira, em Lisboa, e a parte superior da fachada da igreja da Graça, erguida
por Nicolau Chanterene apenas um ano antes, em Évora, cidade onde a corte
permaneceria no decorrer de quase toda essa década.
São
citações livres e abreviadas, frequentes no grupo de pintores lisboetas de
Quinhentos. Espaços e arquiteturas que se manipulam, sujeitando-os à composição
geral e à máxima eficácia narrativa. Por vezes subtis e discretas. Veja-se
como, no grupo de pinturas dedicadas aos Santos Mártires de Lisboa onde
pormenores do Paço da Ribeira são por diversas vezes replicados, a orientação
da escada do Paço, na tábua do Arrastamento pelas ruas, surge invertida
ou espelhada; já na Chegada das Relíquias de Santa Auta ao Mosteiro da Madre de
Deus, a veracidade da portada da igreja tem por contraponto a localização
fictícia do Tejo, não à frente como verdadeiramente acontece, mas atrás, única
forma de tornar visível essa proximidade ao rio, deixando simultaneamente livre
o primeiro plano para a Santa e o cortejo processional. Mais sugestivo, por
constituir justamente um estratagema idêntico ao que Gregório Lopes adopta, se
bem que pela forma inversa, é a representação do Paço da Ribeira no fólio 25 do
Livro de Horas dito de D. Manuel, de António de Holanda, certamente
ajudado por outros pintores, porventura até o próprio Gregório Lopes, como foi
já aventado. A figuração de toda a estrutura monumental do Paço, desde o
torreão ao corpo norte onde se concentrava o grosso dos aposentos da corte,
passando pela longa varanda, obrigou a um rebatimento horizontal, ou
planificação das frentes construídas em ângulo recto. No martírio, ao
contrário, um só plano surge dobrado duas vezes, assim configurando as três
frentes do terreiro em U. Mas voltemos às duas pinturas, a portuguesa e a
flamenga: a similitude entre ambas funciona como confirmação recíproca,
sobretudo porque nada parece ligá-las entre si, cronologia, autoria ou
comitente. O único elo é o tema: ambas remetem, ainda que uma com total
protagonismo, outra de forma discreta, para um espaço real e concreto: a Rua
Nova dos Mercadores, em Lisboa, nos finais da década de 30 e ao findar do
século XVI. Esta nova face da Rua Nova dos Mercadores levanta, porém, uma outra
questão, pois desde a Exposição da Arte Sacra Ornamental, realizada em
Lisboa em 1895, que a referida artéria tinha rosto: a representação do fólio
130 do Livro de Horas dito de D. Manuel, já aqui referido a propósito do
Paço da Ribeira. A imagem integra o conjunto que ilumina o Ofício dos Mortos,
de há muito tido como iconograficamente complexo, mais ainda após a profunda
revisão operada por Vasco Graça Moura ao identificar, no conjunto, episódios de
duas exéquias distintas: a trasladação do corpo de João II de Silves para a
Batalha, em 1499, e as de Manuel I, ocorridas em Dezembro de 1521. Apesar das
controvérsias geradas, um aspecto é consensual: os espaços urbanos que
preenchem as tarjas representam arruamentos e edifícios de Lisboa. Na iluminura
do fólio 129, o cortejo fúnebre de D. Manuel abandona o Paço da Ribeira pelas
escadas que no ângulo davam acesso à sala grande e, desenhando uma curva de 180
graus, passa debaixo do Arco dos Paços, situado no extremo norte da extensa
varanda. Daí, a procissão nocturna seguiria em direcção ao Mosteiro dos
Jerónimos onde, de acordo com a vontade expressa do monarca, o seu corpo seria
sepultado». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores,
em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista
Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.
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