sábado, 29 de outubro de 2016

Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes. Luísa Trindade. «… onde pormenores do Paço da Ribeira são por diversas vezes replicados, a orientação da escada do Paço, na tábua do Arrastamento pelas ruas, surge invertida ou espelhada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A representação da Rua Nova dos Mercadores, todavia, não terá pretendido ser um retrato fiel do espaço a que alude já que os edifícios, fugindo ao plano linear, conformam uma ampla praça em U, ou, de forma mais precisa, um terreiro, cujo especial alongamento perspéctico foi já cabalmente explicado por Joaquim Caetano, como fazendo parte da solução encontrada por Gregório Lopes para corrigir os efeitos da forma enviesada como, no corredor estreito e curvo da Charola, o observador acedia ao quadro. A composição do Martírio de S. Sebastião seria assim o resultado da utilização livre de um conjunto de referências, algumas longínquas, outras coevas e familiares ao pintor, no que não seria, aliás, um recurso invulgar na obra de Gregório Lopes, como foi sublinhado por Joaquim Caetano ou Paulo Pereira: na Degolação de S. João Baptista, de cerca de 1536, fica bem patente a colagem de referências várias: a igreja do Santo Sepulcro, na sua iconografia genérica de já longa tradição, planta centrada, corpo superior rasgado por duas janelas, surge contaminada por dois edifícios portugueses de manifesto impacto à época: a Galeria do Paço da Ribeira, em Lisboa, e a parte superior da fachada da igreja da Graça, erguida por Nicolau Chanterene apenas um ano antes, em Évora, cidade onde a corte permaneceria no decorrer de quase toda essa década.
São citações livres e abreviadas, frequentes no grupo de pintores lisboetas de Quinhentos. Espaços e arquiteturas que se manipulam, sujeitando-os à composição geral e à máxima eficácia narrativa. Por vezes subtis e discretas. Veja-se como, no grupo de pinturas dedicadas aos Santos Mártires de Lisboa onde pormenores do Paço da Ribeira são por diversas vezes replicados, a orientação da escada do Paço, na tábua do Arrastamento pelas ruas, surge invertida ou espelhada; já na Chegada das Relíquias de Santa Auta ao Mosteiro da Madre de Deus, a veracidade da portada da igreja tem por contraponto a localização fictícia do Tejo, não à frente como verdadeiramente acontece, mas atrás, única forma de tornar visível essa proximidade ao rio, deixando simultaneamente livre o primeiro plano para a Santa e o cortejo processional. Mais sugestivo, por constituir justamente um estratagema idêntico ao que Gregório Lopes adopta, se bem que pela forma inversa, é a representação do Paço da Ribeira no fólio 25 do Livro de Horas dito de D. Manuel, de António de Holanda, certamente ajudado por outros pintores, porventura até o próprio Gregório Lopes, como foi já aventado. A figuração de toda a estrutura monumental do Paço, desde o torreão ao corpo norte onde se concentrava o grosso dos aposentos da corte, passando pela longa varanda, obrigou a um rebatimento horizontal, ou planificação das frentes construídas em ângulo recto. No martírio, ao contrário, um só plano surge dobrado duas vezes, assim configurando as três frentes do terreiro em U. Mas voltemos às duas pinturas, a portuguesa e a flamenga: a similitude entre ambas funciona como confirmação recíproca, sobretudo porque nada parece ligá-las entre si, cronologia, autoria ou comitente. O único elo é o tema: ambas remetem, ainda que uma com total protagonismo, outra de forma discreta, para um espaço real e concreto: a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, nos finais da década de 30 e ao findar do século XVI. Esta nova face da Rua Nova dos Mercadores levanta, porém, uma outra questão, pois desde a Exposição da Arte Sacra Ornamental, realizada em Lisboa em 1895, que a referida artéria tinha rosto: a representação do fólio 130 do Livro de Horas dito de D. Manuel, já aqui referido a propósito do Paço da Ribeira. A imagem integra o conjunto que ilumina o Ofício dos Mortos, de há muito tido como iconograficamente complexo, mais ainda após a profunda revisão operada por Vasco Graça Moura ao identificar, no conjunto, episódios de duas exéquias distintas: a trasladação do corpo de João II de Silves para a Batalha, em 1499, e as de Manuel I, ocorridas em Dezembro de 1521. Apesar das controvérsias geradas, um aspecto é consensual: os espaços urbanos que preenchem as tarjas representam arruamentos e edifícios de Lisboa. Na iluminura do fólio 129, o cortejo fúnebre de D. Manuel abandona o Paço da Ribeira pelas escadas que no ângulo davam acesso à sala grande e, desenhando uma curva de 180 graus, passa debaixo do Arco dos Paços, situado no extremo norte da extensa varanda. Daí, a procissão nocturna seguiria em direcção ao Mosteiro dos Jerónimos onde, de acordo com a vontade expressa do monarca, o seu corpo seria sepultado». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT