terça-feira, 18 de outubro de 2016

Conheces Sancho? Maria Helena Ventura. «A tarde morre agora em lamentos de alaúde. Pesadas nuvens cinzentas fermentam ruins presságios, clarões incandescentes riscam a negrura, antes de os trovões deflagrarem como trote de cavalos»

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«Os passos da mulher frágil ecoam pela nave da igreja, quando o último raio de sol se despede da fresta, a ocidente. Na cabeceira do templo, um mancebo louro e pálido dobra a savana do altar. E dom Pelayo, aonde está? O jovem aponta a gelosia da capela lateral, a três braças de distância. La em baixo, na cripta, arrumando cartas de doação, mas querieis... Vira-lhe as costas, direita ao cubículo anexo. Afasta mais a gelosia, pega no facho enfiado no gancho de ferro, a um palmo do ombro esquerdo e projecta-se pelas escadas estreitas com a outra mão a roçar a parede fria. Antes de o clarão do archote varrer a escuridão da catacumba, soa a voz rouca do clérigo. Quem vem lá com tanta pressa? Sou eu, dom Pelayo, Elvira, pára no último degrau com a mão no peito, arfante A minha ama sumiu, ardendo em febre, num abrir e fechar de olhos... O padre abre os braços em cruz, como se o corpo anafado não bastasse para esconder o arcaz, depois avança dois passos e tira-lhe o facho da mão. Como a deixastes fugir se dizeis que ardia em febre? Que sei eu..., ora prostrada desde o raiar da aurora, como que a dormitar, ora entoando a mesma ladainha, de olhos fechados, jamais pensei que se escapulisse enquanto lhe preparava a mezinha. Esperai um pouco por mim, apagou-se-me o brandão, sei lá por quê. É só o tempo de aferrolhar uns documentos. Guardava agora mesmo um pergaminho e uma carta de doação de que vos deveis lembrar... Falais de quê, dom Pelayo? De uma avultada quantia guardada em Toledo para um certo infante, e da escritura de um paço para o mesmo destinatário... Ah, já alcanço o que dizeis. Cuidai dos documentos com desvelo, até o dono aparecer.
A tarde morre agora em lamentos de alaúde. Pesadas nuvens cinzentas fermentam ruins presságios, clarões incandescentes riscam a negrura, antes de os trovões deflagrarem como trote de cavalos. A mancha negra, em cabelo, avança pela vereda em passos hesitantes, magra de carnes, as mãos mirradas como nervuras de uma cúpula minúscula. impelida pelo vento, quase paira sobre os corpúsculos castanhos que se desprendem das árvores, como se andasse à deriva. Avista a ponte sobre o rio Carrión, coagulado de frio. Agora há uma rota definida. Avança, de cabelos desgrenhados, a lembrarem ramos ressequidos por um fogo implacável. Aos que se cruzam com ela, prende os braços, os olhos agitados como torrentes, no Inverno. Conheces Sancho? Diz-me se conheces Sancho... Empurram-na com esgares de desprezo. Chega para lá, bruxa velha. Aguenta-se arrimada ao muro. Aquela palavra, bruxa, ainda faz sangrar uma velha ferida. Era assim que lhe chamavam em surdina, entre risos abafados, quando só de amor ardia. E prossegue a travessia da ponte até alcançar o campo, já a noite se vai fechando rasa de frio e silêncio. Nem voz humana nos alpendres descarnados, nem piar de pássaro nas moitas cerradas. Elvira dá por ela, lá ao fundo, depois de atravessar o caminho. Aponta  corpo enrolado sobre si mesmo. Parece que estou a vê-la, dom Pelayo, vamos andando naquela direcção. Agora já distinguem o débil fio de voz em sons desordenados, cantos ou rezas, estribilhos de delírio para amolecer a dor das lembranças. Ajudai-me a levantá-la, padre, sozinha não vou conseguir, e para a sua ama, descomposta, arrimai-vos ao meu braço, senhora, vamos embora daqui. Mecia enrola-se mais, volta a cabeça na direcção do céu negro. Aonde te escondes, Sancho..., por que não vens? Pelayo abana a cabeça, condoído daquela tristeza toda. A esta altura ainda pergunta por ele?
Agora mais do que nunca, talvez pela consciência do fim. O clérigo curva-se sobre a figura miúda de Mecia, tenta sossegá-la com palavras mansas. Quando, de um só fôlego, lhe levanta o corpo esguio, ela abre os olhos já de cor indefinida, numa mirada de angústia. E tu..., conheces Sancho..., sabes dizer-me aonde está? Há um sussurro de vozes nas ruelas, sons de paz, a rotina costumeira. Conforta o cheiro bom das panelas, o fumo sobre os telhados, o róseo tom da manhã depois de tanta tormenta» In Maria Helena Ventura, Conheces Sancho? Edições Saída de Emergência, 2016, ISBN 978-989-637-951-3.

Cortesia de ESdeEmergência/JDACT