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Tudo voltou a acalmar-se. As cabeças inclinaram-se sobre as pastas e o caloiro ficou
duas horas numa atitude exemplar, embora tenha havido, uma vez ou outra, alguma
bolinha de papel que, atirada com o bico de uma pena, lhe veio acertar na cara.
Mas ele limpava-se com a mão e continuava imóvel, de olhos baixos. À noite, na
sala de estudo, tirou da carteira as mangas de alpaca, arrumou as suas coisas e
traçou cuidadosamente as linhas no papel. Vimo-lo trabalhar conscienciosamente,
procurando todas as palavras no dicionário e esforçando-se bastante. Foi sem
dúvida essa boa vontade de que deu provas que lhe valeu não ter passado para a
classe inferior, porque, embora soubesse razoavelmente as regras, não tinha
nenhuma elegância nos modos. Fora o cura da aldeia que o iniciara no latim,
visto os seus pais, por economia, o terem enviado para o colégio o mais tarde
possível. O pai, senhor Charles-Denis-Bartholomé Bovary, antigo ajudante do
cirurgião-mor, comprometido, por volta de 1812, em assuntos de recrutamento e obrigado,
por essa época, a abandonar o serviço, aproveitara-se então das vantagens
pessoais para arrecadar um dote de seis mil francos, que se lhe oferecia na
pessoa da filha de um negociante de chapéus, a qual se apaixonara pela sua
elegância. Homem belo, fanfarrão, fazendo tilintar bem as esporas, usando
suíças compridas a tocar nos bigodes, com os dedos sempre carregados de anéis e
vestido de cores vistosas, tinha o aspecto de um valente, com a desenvoltura de
um caixeiro-viajante. Depois de casado viveu dois ou três anos da fortuna da
mulher, comendo bem, levantando-se tarde, fumando em grandes cachimbos de
porcelana, só voltando para casa à noite, depois do espectáculo, e frequentando
os cafés. O sogro morreu e deixou pouca coisa; ele indignou-se com isso, montou
uma fábrica, perdeu nela algum dinheiro e retirou-se para o campo, onde pretendeu
desforrar-se. Mas, como não entendia mais de agricultura do que de chitas, e
porque montava os cavalos em vez de os pôr a trabalhar, bebia sidra às garrafas
em vez de a vender em barris, comia as melhores aves da capoeira e engraxava as
botas de caçar com o toucinho dos porcos, não tardou a aperceber-se de que mais
valia abandonar toda a especulação.
Pela
importância de duzentos francos anuais conseguiu então arrendar, numa aldeia
dos confins das terras de Caux e da Picardia, uma espécie de quinta e, ao mesmo
tempo, residência de proprietário. Desgostoso, cheio de remorsos, acusando o
céu, sentindo inveja de toda a gente, encerrou-se ali a partir da idade de
quarenta e cinco anos, enojado com os homens, dizia ele, e decidido a viver em
paz. A mulher fora em tempos louca por ele; amara-o com mil e uma atitudes de servilismo,
que ainda mais o afastaram dela. Outrora jovial, expansiva e apaixonada,
tornara-se, ao envelhecer (como o vinho que, exposto ao ar, se transforma em
vinagre), mal-humorada, lamurienta, nervosa. Sofrera tanto, sem se queixar, ao
princípio, quando o via correr atrás de todas as marafonas da aldeia e quando,
à noite, voltava dos piores lugares, embrutecido e a cheirar à bebedeira!
Depois, o orgulho dela revoltara-se. Então tornara-se calada, engolindo a raiva
num estoicismo mudo que conservou até à morte. Mantinha-se continuamente
ocupada, tratando dos negócios da casa. Ia falar aos advogados, ao juiz,
recordava-se do vencimento das letras, conseguia prorrogações; e, em casa,
passava a ferro, cosia a roupa, lavava, vigiava os trabalhadores, liquidava as
contas, enquanto, sem se preocupar com coisa nenhuma, o senhor, permanentemente
entorpecido numa sonolência amuada de que só despertava para lhe dizer coisas
desagradáveis, continuava a fumar ao canto da lareira e a cuspir nas cinzas. Quando
ela teve um filho, foi preciso entregá-lo a uma ama. Logo que voltou para casa,
o garoto foi amimado como um príncipe. A mãe alimentava-o com doces; o pai
deixava-o correr descalço e, para se mostrar filósofo, dizia até que ele podia
andar todo nu, como os filhotes dos animais. Ao contrário das tendências
maternas, tinha ele um certo ideal viril da infância, segundo o qual procurava
formar o filho, querendo que este fosse educado duramente, à maneira espartana,
para adquirir uma boa constituição. Mandava-o ir deitar-se às escuras,
ensinava-o a beber grandes doses de rum e a insultar as procissões. Mas, como
era por natureza pacífico, o miúdo correspondia mal aos seus esforços. A mãe
andava sempre com ele agarrado às saias; recortava-lhe cartões, contava-lhe
histórias, entretinha-se com ele em monólogos sem fim, cheios de gracinhas
melancólicas e de tagarelices mimalhas. No isolamento da sua vida, ela meteu
naquela cabeça de criança todas as vaidades esparsas, desfeitas. Sonhava com
altas posições, via-o já crescido, belo, espirituoso, bem estabelecido, como
engenheiro ou magistrado. Ensinou-o a ler e, com a ajuda de um velho piano que
tinha, até o ensinou a cantar duas ou três romanças. Mas, a tudo isso, o senhor
Bovary, pouco preocupado com as letras, dizia que não valia a pena! Teriam eles
alguma vez meios para o manter nas escolas do Governo, para lhe comprar um
cargo ou montar-lhe um negócio? Além disso, um homem desembaraçado triunfa
sempre na vida. A senhora Bovary mordia os lábios e o filho vagabundeava pela
aldeia. Ele seguia os trabalhadores e fazia voar os corvos, atirando-lhes com
torrões. Comia amoras pelos valados, guardava os perus com uma vara, espalhava
o trigo para secar, corria pelo bosque, brincava ao jogo do avião debaixo do pórtico
da igreja nos dias de chuva e, nos dias de festa, pedia ao sacristão que o deixasse
tocar os sinos, para se pendurar com todo o peso na grande corda e sentir-se
levado por ela no seu vaivém.
Por
isso foi crescendo como um carvalho. Adquiriu mãos robustas e cores saudáveis».
In
Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1857, Relógio d’Água, 2011, ISBN 978-989-641-177-0.
Cortesia de Relógio
d’Água/JDACT