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e wikipedia
Marselha. Setembro de 1997
«(…)
O corpo estava no mar havia bastante tempo, sacudido pelas ondas e roído pelos
famintos habitantes das profundezas. Os investigadores ficaram tão impressionados
com as precárias condições do cadáver que atribuíram pouco significado ao dedo
desaparecido numa das mãos. Uma autópsia, arquivada mais tarde pela burocracia,
ou talvez por algo mais, limitou-se a registar que o dedo indicador da mão
direita fora deceptado.
Jerusalém
A
antiga e movimentada Cidade Velha de Jerusalém fervilhava com a frenética actividade
de uma tarde de sexta-feira. A história impregnava o ar seco, enquanto os fiéis
se apressavam a caminho de suas casas de culto, em preparativos para os
respectivos sabás. Os cristãos vagueavam pela Via Dolorosa, a Via Sacra, uma
série de ruas sinuosas, calçadas com pedras, que fora o caminho para a
crucificação. Fora por ali que um Jesus Cristo açoitado e sangrando, suportando
no ombro uma pesada cruz, seguira para seu destino divino, no alto do Gólgota.
Naquela tarde de Outono, a escritora americana Maureen Paschal não parecia
diferente dos outros peregrinos, que acorriam dos cantos mais distantes e
variados do mundo. A brisa inebriante de Setembro misturava o aroma de shwarma, o prato de galinha desossada crepitante,
com os cheiros de óleos exóticos que exalavam dos mercados antigos. Maureen circulava
pelo impacto sensorial que era Israel, com um guia de viagem de uma organização
cristã, comprado pela Internet. O guia detalhava a Via Sacra, com mapas e
instruções para encontrar as catorze estações do caminho de Cristo. Quer um
rosário? É madeira do Monte das Oliveiras. Precisa de um guia? Nunca se vai perder.
E mostrarei tudo que quiser. Como a maioria das ocidentais, ela era obrigada a
se esquivar dos avanços indesejáveis dos mercadores das ruas de Jerusalém.
Alguns eram insistentes em seus esforços para oferecer mercadorias e serviços.
Outros apenas sentiam-se atraídos pela mulher pequena, de cabelos ruivos
compridos e pele clara, contraste singular naquela parte do mundo. Maureen repelia
seus perseguidores com um Não, obrigada polido, mas firme. Depois, ela
desviava o olhar e se afastava. Seu primo Peter, especializado em estudos do Médio
Oriente, preparara-a para a cultura da Cidade Velha. Maureen era meticulosa em
seu trabalho e estudara a cultura de Jerusalém com todo o cuidado. Até agora,
estava dando resultado. Maureen era capaz de desviar sua concentração o mínimo,
enquanto se detinha na pesquisa, observando e anotando detalhes no caderninho
de capa de couro. Ficara comovida até as lágrimas pela intensidade e beleza da
Capela da Flagelação franciscana, erguida há oitocentos anos no lugar em que
Jesus sofrera as vergastadas. Uma reacção emocional profunda e inesperada, já
que Maureen não fora a Jerusalém como peregrina, mas como observadora investigativa,
uma escritora em busca do cenário histórico acurado para a sua história. Ao procurar
uma compreensão maior dos acontecimentos da Sexta-feira da Paixão, Maureen abordara
a pesquisa com a cabeça, não com o coração. Visitou o Convento das Irmãs de
Sion, antes de passar para a vizinha Capela da Condenação, o lendário local em
que Jesus recebera a cruz, depois da sentença de crucificação proferida por
Pôncio Pilatos. Mais uma vez, o inesperado aperto na garganta foi acompanhado
por um sufocante sentimento de angústia, enquanto percorria o prédio. Esculturas
em baixo relevo, em tamanho natural, ilustravam os eventos de uma manhã terrível,
dois mil anos antes. Maureen ficou imóvel, paralisada, por uma cena vivida de humanidade
atormentada: um discípulo que tentava proteger Maria, a Mãe de Jesus, poupando-a
da visão do filho carregando a cruz. Lágrimas arderam no fundo dos seus olhos enquanto
contemplava a imagem. Era a primeira vez na vida em que pensava naquelas personagens
históricos como pessoas reais, seres humanos de carne e osso, sofrendo por uma
fatalidade quase inconcebivelmente dolorosa. Como se sentisse um pouco tonta,
Maureen estendeu a mão para as pedras frias da parede antiga, a fim de se
firmar. Fez uma pausa para se concentrar, antes de retomar as anotações sobre
as pinturas e esculturas. Continuou em seu caminho, mas as ruas da Cidade Velha
eram um autêntico labirinto. Podiam ser enganadoras, até mesmo para quem tinha
um mapa meticuloso. Os pontos de referência eram quase sempre antigos,
desgastados pelo tempo, e podiam passar despercebidos, com a maior facilidade,
por pessoas que não conheciam seu paradeiro. Maureen esboçou uma imprecação
silenciosa ao compreender que se perdera de novo. Parou ao abrigo do vão de
porta de uma loja, evitando o sol directo. A intensidade do calor, apesar da
brisa que soprava, não combinava com a época do ano, o final do Verão. Ela protegeu-se
com o guia, da claridade forte, consultou-o e olhou ao redor, tentando-se
orientar. A Oitava Estação da Cruz deve ser em algum lugar aqui por perto,
murmurou. Maureen tinha um interesse específico pelo local, na medida em que
seu trabalho concentrava-se na história relacionada com as mulheres. Numa nova
consulta ao guia, ela leu a passagem dos evangelhos relacionada com a Oitava
Estação: Muitas pessoas o seguiam, inclusive mulheres que lamentavam e choravam
por ele. Jesus disse: não chorem por mim, filhas de Jerusalém. Chorem
por si mesmas e por suas crianças. Maureen foi surpreendida por uma batida
firme na vitrine, por trás dela. Virou-se, esperando deparar com o olhar de um
proprietário furioso por estar bloqueando a entrada da loja. O rosto que a
fitava do outro lado, entretanto, exibia uma expressão radiante. Um palestino
de meia-idade, vestido de maneira impecável, abriu a porta da loja de
antiguidades fazendo sinal para Maureen entrar. Quando ele falou, foi num
inglês correcto, temperado pelo sotaque: entre, por favor. Seja bem-vinda. Sou
Mahmoud. Está perdida?» In Kathleen McGowan, O Segredo do Anel,
Editora Rocco, 2006, ISBN 853-252-096-0.
Cortesia de ERocco/JDACT