sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Carlota Ângela. Camilo Castelo Branco (1825-1890). «Está dito! Casarás com o homem; mas já agora hão-se de festejar os teus “dezessete” anos em casa. Eu já lhe disse a ele que esperasse um mês, e depois arranja-se isso»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la num incêndio?» In Shakespeare

«(…) Esgotara-se o pecúlio. Norberto fez menção de erguer-se. Salter notou a grosseria; mas desculpou-a ao pai de Carlota. Retirou-se acompanhado até ao pátio, honra que três vezes recusara, mas, à quarta, o negociante disse que ia para o escritório tratar da labutação dos arrozes que estavam à descarga. Isto é que era legitimamente dele. Carlota, enquanto a visita esteve, não obstante o grande espaço que a distanciava da sala, apurava o ouvido na extrema de um corredor por onde poderia embuzinar a voz do pai, se ele a engrossasse, como costumava, nos agastamentos. Ouvindo rumor de passos na saída, correu ao seu quarto, e sentiu-se desanimada para receber a visita colérica do pai. Até então dera-lhe o amor afoiteza para responder às iras paternais; e a risonha esperança de permanecer poucas horas em casa, depois da expulsão de Mendonça, afigurava-se-lhe agora uma tenção criminosa. Era o medo que a transtornava assim; logo, porém, que o sobressalto se desvanecesse, viria a reação do amor restituir-lhe o vigor de um propósito, cuja firmeza as ameaças do pai não abalariam. Pouco depois, Carlota foi chamada ao quarto da mãe, e achou-a prazenteira e jovial. O pai entrou após ela, e fingiu o mais lhano e caricioso semblante. Carlota estava espantada, e não podia crer o que via. Diz-me cá, menina, disse Norberto, já sabes..., ora se sabes!... O que, papá? Faz-te tolinha, minha sirigaita! Arranjaste um marido, sem dizer água vai, assim do pé p’ra mão como quem se casa por sua conta e risco... Carlota baixou os olhos com humildade. Norberto perdeu um pouco do seu caráter artificial, e prosseguiu: ora, sempre tenho uma filha como se quer! Posso-me gabar!... Nem eu nem tua mãe valemos nada, Carlota! Vê-se um troca-tintas, e não há mais que dizer-lhe: se quer casar comigo, estou aqui às suas ordens; vá pedir-me a meu pai, e diga-lhe que me dê o dote que ele me ganhou a trabalhar trinta anos. Isso é bonito, Carlota? Dona Rosália pisara rijamente o pé do marido, e conseguira recordar-lhe a traça combinada com o doutor. Carlota começava a sentir a reação, ia erguendo a cabeça abatida para repelir a grosseira invectiva do pai, quando este, com velhaca subtileza, mudou para brando aspecto a severa carranca, e prosseguiu: enfim, quem casa és tu; o mal e o bem para ti o fazes. Se queres casar com esse rapaz, casa. Eu disse-lhe o que um bom pai deve dizer. Consenti, com tanto que a vontade de minha filha seja essa. Que dizes a isto, Carlota? Estás decidida a casar com o tal sr. Mendonça? Visto que meu pai não se opõe à minha vontade... E, se eu não quisesse, casavas do mesmo modo?... Diz lá! Se o pai não quisesse, eu havia de pedir-lhe tanto que me deixasse ser feliz, que o meu bom pai..., consentiria... Lá isso é verdade..., replicou o negociante, obedecendo à terceira pisadela da irmã do bacharel, eu o que quero é a tua felicidade... Bem sabes que sou teu amigo como ninguém, ainda que te pareça que lá o teu namorado te quer mais que eu... É boa asneira a das raparigas, que trocam pai e mãe pelo primeiro perna-fina que lhe empisca o olho ao dote!... (Quarta pisadela de Rosália, e mutação de cara e diapasão de voz em Norberto) Está dito! Casarás com o homem; mas já agora hão-se de festejar os teus dezessete anos em casa. Eu já lhe disse a ele que esperasse um mês, e depois arranja-se isso, e está acabado o negócio. O rapaz, pelos modos, é pobre; mas o teu dote, se Deus quiser, chegará para tudo. Estás contente, Carlota? Oh meu querido pai!, exclamou ela, beijando-lhe afervoradamente a mão, eu sabia que era muito meu amigo; mas não esperava tanto da sua boa alma. Fui má filha em ter guardado este segredo; perdoem-me, por quem são; é que eu tremia só da ideia de os desgostar, não podendo sufocar o amor que lhe tenho..., a ele... Não chores, Carlota, que não tens por que chorar..., disse dona Rosália. Eu choro de contentamento, minha mãe, por ver que a minha ventura é possível sem desgostar meus pais...» In Camilo Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre, Iba Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.

Cortesia de PoeteiroE/JDACT